segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os patinhos feios de Boris Cyrulnik

Trechos relativos ao trabalho criativo

Lastimo não o ter encontrado antes, enquanto Jean Laborde. Ouvia frequentemente referência à Laborde. Estou maravilhada, já não estou mais sozinha trilhando a senha da resiliência!
O trabalho de pesquisa que ele efetuou sobre populações afetadas por catástrofes é denso e pormenorizado, aprofundando e desenvolvendo os diferentes traços dos feridos, diferentes estratégias de sobrevivência através da criação de saídas possíveis. “Aliás, a sabedoria nos ensina que “criar” significa, na língua da Igreja, “fazer nascer do nada, trazer ao mundo uma criação que não existia antes!” Diante do nada, quais são as nossas escolhas?
Ou nos deixamos fascinar, arrebatar pela vertigem do vazio até sentir a angústia da morte, ou nos debatemos e trabalhamos para preencher esse vazio. No início, sentimos a energia do desespero, uma vez que o vazio está vazio, mas, assim que aparecem as primeiras construções, é a energia da esperança que nos estimula e nos compele à criação para sempre, até o momento em que, no fim da vida, “morremos em plena felicidade por nossas infelicidades passadas.” Karen Blixen analisa o mesmo processo de resiliência que Cioran: a pressão para a metamorfose que, graças à alquimia das palavras, dos atos e dos objetos, consegue transformar a lama do sofrimento em ouro da “criação, que é uma preservação temporária das garras da morte” .
O despertar da criatividade necessita uma falta. “A criação do símbolo decorre da perda do objeto que antes trazia total satisfação.”
Compreende-se que o mito do duplo ou a magia do espelho possuam um efeito euforizante, à beira da angústia, pois é se havendo com a morte que se faz nascer uma imagem.
Reconhecer a perda até a morte e enfrenta-la para ressuscitar o amor perdido está no “berço da cultura humana." E para que essa impressão passe da perda ao progresso, basta um pequeno gesto ou uma simples palavra que oriente a criança para a criatividade e faça nascer nela o maravilhamento da magia.
A arte não é um lazer, é uma pressão para lutar contra a angústia do vazio... As crianças brutalizadas não têm escolha. O que elas conseguem transformar em hino à alegria é a cacofonia do desespero. É pela representação que elas tomam seu destino em mãos. O desenho toma forma narrativa em que a criança expressa e dirige a alguém seu mundo íntimo. O talento consiste em expor sua provação numa intriga engraçada. O talento supremo consiste em expor sua infelicidade com humor. Quando essa metamorfose da representação é possível, o acontecimento doloroso fará o mesmo caminho no teatro ou no desenho. O humor não é o escárnio da ironia nem a negação da agressão, nem mesmo a transformação de um sofrimento em prazer. É a memória do trauma, sua representação que se torna menos dolorosa quando o teatro, o desenho, a arte, o romance, o ensaio e o humor trabalham para construir um novo sentimento de si mesmo.
Os torturados ou filhos de torturados reelaboram a imagem de si mesmos pela ação extrema e pela reflexão séria. Não pelo humor. A maioria das vezes engajam-se em ações militantes...
Quando os traumatizados não conseguem dominar a representação do trauma simbolizando-o através do desenho, da fala, do romance, do teatro ou do engajamento, então a lembrança se impõe e captura a consciência, fazendo voltar incessantemente não o real, mas a representação de um real que os domina.

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Magia diz: Por favor, não retirem aos torturados a possibilidade do humor, do jogar com as palavras, do resignifica-las, pois não há outra coisa a fazer. Aliás, o humor advém exatamente do reencontro com o trauma, com o fantasma do pai apavorante, com o esqueleto do terror dos anos de chumbo durante a infância no quarto de dormir... Momento altamente liberador da vida! Sim, vivi dos meus insights! E quando revi o esqueleto/múmia em análise, eu ri, sem saber bem por quê. Foi um riso catártico. Como um renascimento! --

Conclusão
Há previsões que no século XXI as exclusões vão se agravar. Quando uma criança for expulsa do seu domicílio por um problema familiar, quando for colocada numa instituição totalitária, quando a violência do Estado se estender ao planeta, quando ela for maltratada por aqueles que deveriam lhe proteger, quando uma avalanche de sofrimentos a soterrar, será preciso agir sobre todos os momentos da catástrofe: o momento político para lutar contra os crimes de guerra, o momento filosófico para criticar as teorias que as preparam, o momento técnico para reparar as feridas e o momento resiliente para retomar o curso da existência. A vida é demasiado rica para se reduzir a um discurso. É preciso escreve-la como livro ou canta-la...
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Magia diz: Achei esta frase muito boa: "A slave is one who waits for someone to come and free him." Ezra Pound
Não se deve mesmo esperar do outro, o que recebemos dele, vem quando menos se espera e só sabemos depois, quando aquilo é confirmado por ressoar na nossa experiência.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A MULHER NA HISTÓRIA

“O DESTINO DA MULHER E DA MENINA NUMA PERSPECTIVA HISTÓRICA”
PERSPECTIVA HISTÓRICA & TRADIÇÃO, Ideologia & Geografia (TRECHOS)

O peso das tradições judaico-cristãs: Durante séculos, o direito religioso presidiu à vida social e familiar!

A BÍBLIA E O TALMUD
Na Bíblia, a mulher é a propriedade de um homem: o pai, o marido ou o tutor. E da família… Tem um valor comercial flutuante, não goza do valor moral intrínseco absoluto que atribuímos idealmente ao homem.
Um casamento é, por conseguinte, uma transação comercial e as meninas constituem um capital. Uma antiga tradição semítica situava a idade mínima para o casamento as meninas de três anos e um dia e Moisés Maimonide, um médico que viveu no século XII, reafirmou que uma criança de sexo feminino com a idade de três anos e um dia podia ser noiva por copulação desde que houvesse autorização do pai. Uma menina com mais de 12 anos era considerada muito idosa para se casar.
Durante séculos, a diferença entre compromisso e casamento não foi muito marcada: ambos eram tornados válidos pela copulação. “Já que as relações heterossexuais eram fundadas sobre uma transação comercial (…) a violação era um crime equivalente ao furto, e o pagamento de uma multa e o casamento podiam legitimar.” (Fl. Rush: 1983)
Um princípio bastante específico invalidava as atividades sexuais com crianças abaixo de certa idade, que se aplicava às crianças dos dois sexos: os meninos menores de 9 anos e as meninas com menos de 3 anos não eram considerados como pessoas no plano sexual. Copular com criancinhas não era ilegal, mas “inválido”. Legalmente, a menina permanecia virgem e, por conseguinte, o autor das sevícias não podia nem ser perseguido nem punido.

O PODER DO PAI
Na lei hebraica (herdeira dos códigos babilônicos e assírios) tão constrangedora na vida diária, o que parece surpreendente, é que o poder do pai seja tão grande. Não o poder do homem, mas o do pai! Em nenhum momento, a lei o constrangia: aconselha-o, ou até desaprova-o, mas nunca o submete a esta lei dado que a lei é ele… O poder do pai é total! Tem assim direito de vida e de morte sobre a mulher e seus filhos. Possui o direito de prostituir legitimamente a sua filha no âmbito de uma transação monetária legal. Se ela se prostituir por sua própria iniciativa, ela comete um crime capital que era punido de morte, queimada ou lapidada!… Se tivesse menos de doze anos, esperava-se o seu aniversário para proceder à execução!
“A Bíblia não comporta proibição à prostituição: o único crime que reconhece nesta matéria é o da criança que desafia a autoridade paterna.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 à 112)
As leis e costumes fundamentais relativos às relações sexuais são as que duraram mais. Permanecerão inalteradas com a chegada ao poder da Igreja católica na Europa.

A IGREJA CATÓLICA ROMANA
Durante a era cristã, cavaleiros cristãos, nobres, cruzados e os príncipes da Igreja seqüestravam regularmente mulheres e crianças e os casamentos de crianças serviam correntemente de base nas transações comerciais ou políticas. “O direito Canônico proibia em teoria os casamentos de crianças (12 anos para as meninas, 14 anos para os rapazes), mas as exceções possíveis ao impedimento eram tão freqüentes que a regra oficial perdia seu significado: os Pais da Igreja consideravam que extrema juventude era um estado passageiro, a pequena noiva terminaria por atingir a maioridade… (passagem à idade adulta aos 7 anos!)” (Fl. Rush - 1983, pp. 39 à 112)

CASAMENTO VÁLIDO
“O Judaísmo tinha determinado que se podia adquirir uma noiva legalmente quer por contrato, quer comprando-a, quer numa relação sexual com ela. Dado o despeito da Igreja por tudo o que era material, as relações sexuais tornaram-se o elemento determinante de validação. ” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
A partir do século V, o papa Gregório decretou que “qualquer mulher que copulasse com um homem a ele pertencia, bem como à família” e mesmo se se tratasse de uma violação, após sequestro, por exemplo. No século XII, o papa Alexandre III declarou que a copulação dava ao casamento um caráter eterno e que este não podia ser dissolvido. Como na tradição hebraica (onde as relações sexuais com uma menina de três anos eram nulas e não existentes), a Igreja considerava que as atividades sexuais com menores de sete anos eram sem consequências. E “o impedimento por afinidade” (ou seja o incesto) não cabia no caso de uma menor de sete anos. “O que é impressionante, é que direito canônico cristão não se preocupa tanto pelo fato que um homem adulto copule com uma criança senão a partir do MOMENTO em que a coisa se produziu!” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
No caso de incesto, o problema levantado não era a preocupação com o destino das crianças mas, simplesmente, para saber se “o impedimento de afinidade” era ou não violado.
NA INGLATERRA
O crime de violação evoluiu de um ponto de vista legal a partir do século XIII quando da separação do direito civil do direito religioso (Tratado de Westminster). Mas é necessário esperar o século XVI para que a violação de uma criança menor de 10 anos se torne um crime, o de uma menina entre o 10 e 12 anos permaneceu apenas um delito. A acusação podia ser retida apenas se se pudesse provar a idade da vítima, o que na época não existia nenhum procedimento oficial de registro. Esta acusação era fonte de tanto suspeita e embaraço para denunciante e se traduzia por uma punição tão leve que poucas vítimas utilizavam o procedimento legal. O direito canônico conservava ainda toda a sua potência no que se referia às relações sexuais com uma menor de sete anos: a violação destas crianças permanecia sempre sem objeto aos olhos da lei.

O PAI ESPIRITUAL
Grandes eram os privilégios dos quais gozavam os membros do clero…
A partir da idade de 16 anos, o destino de uma menina estava selado: o casamento ou o mosteiro implicavam a renúncia a todos os bens terrestres… Os pais ou os tutores legais pronunciavam os votos invés das crianças! No século XII, quis-se proibir esta prática tanto os conventos estavam lotados de noviças, mas esta diretiva foi ignorada. Contrariamente ao que se passa hoje, a carreira eclesiástica era mais raramente uma escolha espiritual e resultava frequentemente de uma decisão não pessoal de caráter econômico ou político. No início do século XVIII, a abadessa do convento de Santa Catherina di Pisola declarou abertamente que os monges e padres tratavam as religiosas e noviças como mulheres e que estas se calavam “pela ameaça de excomunhão que brandiam os seus pais espirituais.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
“Ainda no século XIX e ainda que os testemunhos conservados livravam apenas um mínimo de informação, a metade das acusações de sevícias sexuais relativas ao clero têm como origem as instituições educativas.” (Fl. Rush - 1983, p. 39 - 112)
A Igreja evitará todo escândalo e o enfraquecimento do seu poder, e passa a ser quase impossível de levar adiante uma acusação ou condenar um membro do clero… Os Pais da Igreja ainda precisaram, ”além disso, são as próprias mulheres, as sedutoras”. (Idem)
Esta ideia vai atingir o seu paroxismo entre os séculos XV e o XVI na Europa, na época da grande caça às bruxas…

A CAÇA ÀS BRUXAS
“Em 1484, o papa Inocente VIII publicou uma bula pontifical que dava poder à Inquisição (braço judicial da Igreja católica romana) de procurar, encarcerar, investigar, torturar e fazer executar as bruxas. (...) O Malleus Malificarum, documento que passou a ser o manual da caça às bruxas, podia fazer de qualquer mulher que preenchesse o seu papel tradicional, uma bruxa.” (Idem): nenhuma mulher, pela sua essência, tinha renunciado nem às piores abominações nem aos excessos mais terríveis, indo mesmo até a copular com o demônio… Acusava-se vinte mulheres para um homem. A bruxaria era, sobretudo um crime de caráter sexual cometido pelas mulheres. Os homens em geral eram preservados deste crime, as crianças não o eram,… sobretudo não as pequenas meninas!!!!
No entanto, “Jean Bodin, monge Carmel e professor de Direito canônico vivo, no século XVI, decretou que as medidas legais comuns mostravam-se insuficientes para desenraizar a heresia: as pequenas meninas de 6 anos (idade legal nessa época para consentir a uma atividade sexual na França) estavam em condições de copular com o diabo e, por conseguinte, bem grandes para sofrer um processo”!!! (Idem)… e os suplícios e punições reservados às crianças eram os mesmos que os praticados em adultos.
De acordo com “… a descrição feita “do demônio” pelas pequenas vítimas, pode-se ver que se assemelha a qualquer homem e que ele engravida, que transmite doenças venéreas e que as feridas provocadas pelo coito muitas vezes custaram a vida da denunciante. Mas a ideia aceita na época era que uma criança demasiado pequena para suportar um homem “adaptasse-se do demônio”. Idem”

A INGLATERRA E A EUROPA VICTORIENNE
CULTO DA PEQUENA MENINA E DESENVOLVIMENTO DA PROSTITUIÇÃO
No século XIX, assistimos ao desenvolvimento da ciência e da indústria. É também a época em que se manifesta sem retenção o gosto/culto da pequena menina, sob duas formas: por um lado, deificação e, por outro lado, as sevícias sexuais, a violação, a prostituição. A nova invenção da fotografia muito contribuirá para o desenvolvimento da pornografia infantil.
O século XIX é igualmente a época do desenvolvimento das novas escolas de psicologia e comportamento humano: ainda assim continua-se dizendo que, “… as mulheres eram desprovidas de impulsos sexuais e era ofensivo supor que os tivessem.” Do mesmo modo, as pequenas meninas, se fossem violadas, não sofreriam nenhum dano pois não compreendiam o que o seu agressor lhes fazia. Em contrapartida, os impulsos sexuais do homem eram a fonte do progresso e da civilização. Tratava-se de uma energia necessária, o instinto criativo do macho. E este instinto, pela sua essência, deve infligir sofrimento… Ideia do homem conquistando a natureza,… a mulher representando o papel da natureza!…
Os autores franceses não eram os últimos a defender este ponto de vista. De acordo com Honoré de Balzac: “A mulher é uma propriedade que se adquire por contrato; é móvel porque possessão vale título; e mais, a mulher, propriamente falando, é apenas um anexo do homem; ora, cortem, roam, elas lhes pertencem a todos os títulos. Não se preocupem em nada com os seus murmúrios, os seus gritos, as suas dores. A natureza as fez para o nosso uso e para carregar todos os fardos: crianças, tristezas, golpes e penalidades do homem.” (Fl.Rush - 1983, p. 119 - 120)
Como estes impulsos são impossíveis de dominar (sem os quais o homem não seria mais um homem), assiste-se a um desenvolvimento alarmante da prostituição.
“A literatura da época vitoriana pulula de histórias de gentlemen deflorando virgens,… sempre uma pequena menina!” (Idem)
Ver a série de histórias publicadas sob o título RELATOS DA MINHA AVÓ E O AMOR: onde se vê a jovem Kate, pré-adolecente, descrever “os esforços e os golpes de bastão até ocorrer a crise final em que o seu seio era invadido pelo dilúvio do esperma paterno”.
Seduzir as meninas do povo era considerado como um direito dos herdeiros da classe possuidora e cultivada. Os homens amadores de ninfetas estavam prontos a pagar um bom preço para obter o que desejavam: crianças tiradas dos pardieiros das grandes cidades com freqüência pelo sistema de seqüestro conhecido sob o nome de tráfico de brancos. Do comércio local, passaram ao tráfico nacional seguido pelo internacional.
“Uma estimativa feita em Londres no meio do século XIX chega à conclusão que cerca de 400 pessoas ganhavam a vida recrutando meninas entre 11 e 15 anos.” (Idem)
Foi necessária a intervenção da Sociedade das Nações Unidas e depois as Nações Unidas para a adoção de medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças para que cessasse o tráfico de brancos.

SITUAÇÃO DE ESCRAVAS
A criança raptada ou vendida era levada para longe de casa e colocada em situação de dependência total. Ver “A casa da escravidão” (The House of Bondage, Kauffman, 1910 - EUA): Ela poderia pensar que era brutalizada pelos seus raptores, mas acabava depressa constatando que eram eles quem a mantinham em vida, é desta maneira que se torna escrava… Revoltar-se, como, o que fazer? Partir, para ir aonde? Quem vai cuidar de mim? Quem de mim gostará? Falar, quem vai acreditar? Submissão = silêncio. Este processo posto em evidência é completamente aplicável à situação de incesto pai-filha…

PROSTITUIÇÃO: JUSTIFICAÇÃO DA EXPLORAÇÃO SEXUAL
“Definindo a prostituição como um mal necessário (80% das prostitutas são vítimas de incesto - nota acrescentada), a sociedade chegava a convencer-se que a exploração sexual era justificada pelo fato de que as mulheres perdidas ou decaídas, qualquer que fosse sua idade ou a causa, eram ninfomaníacas e pecadoras e que nada, nem ninguém as podia salvar. Não mereciam outra coisa senão realizar a existência que escolheram.” (Idem)
É sempre o mesmo discurso hoje: a mulher violada levanta suspeita na opinião pública. “Procurou-o, tem aquilo que merece!” - “Ela gosta, é ela que quer!” E o pai, que violou a sua filha, dirá: “Ela sabia o que ia lhe acontecer!… Era tão carinhosa, foi ela quem me seduziu!”
“Podemos pensar que estamos muito longe do universo dos nossos antepassados, mas a ideia de que as mulheres são propriedade sexual dos homens persiste, no entanto. Consideram ainda que um homem não pode violar a sua mulher pois não há abuso sexual contra algo que lhe pertence.” Esta ideia é muito difundida entre os pais abusadores em relação a sua filha!

A LUTA CONTRA OS ABUSOS SEXUAIS NO SÉCULO XIX
Mulheres como Joséphine BUTLER, nascida no Reino Unido, em 1828, revelaram e denunciaram as práticas sexuais do seu tempo. Prostitutas eram ameaçadas, insultadas de maneira obscena, incomodadas pela polícia e cafetões de casas fechadas que alugavam os serviços de vadios para as atacar.
O Exmo. Senhor James STANSFIELD, membro eminente do Parliament, juntou-se às suas filas. William STEAD, editor do Pall Mall Gazette, juntou-se também as filas dos que lutavam contra a exploração sexual. Fez a experiência de adquirir uma menina de 13 anos para provar aos seus leitores que era possível: o Parliament foi forçado a criar a idade do consentimento aos 16 anos para o Reino Unido. Graças a estes pioneiros, as Nações Unidas adotaram as medidas contra o tráfico internacional de mulheres e crianças.

HOJE
É certo que redes existem que fornecem “adolescentes às redes européias de prostituição, principalmente, meninas entre 14 à 17 anos, provenientes das Filipinas ou da Tailândia. Os países asiáticos são as principais vítimas da prostituição infantil. Recenseia-se, hoje, mais de cem mil prostituídas menores de 16 anos.”
No Iémen, Arábia Saudita, Etiópia, Sudão, a excisão de meninas ainda é prática; a operação é frequente na Jordânia, Síria, Costa de Marfim, Dogons da Nigéria e é obrigatória em numerosas tribos africanas. No Sudão, Somália, Namíbia, Jibuti, Etiópia, África Preta pratica-se muito, além disso, a dolorosa infibulação* (órgãos genitais costurados ou cauterizados).
Em julho de 1974, o professor Pierre Henry, especialista em erotismo africano, tentava justificar a excisão nestes termos: “A excisão é uma tentativa consequente para favorecer a integração sexual da mulher em função de critérios estritamente sociais. A vocação da mulher guineense é a maternidade. A excisão suprime o órgão do prazer estéril, por conseguinte, associal, para deixar subsistir apenas o órgão do prazer fértil, por conseguinte, social”…
O. Boissier Trabalho de graduação em CIÊNCIA SOCIAL do TRABALHO - 1984/88 (Le Louvière)
Tradução Mirian Giannella.
*As práticas da mutilação feminina
As mutilações dos genitais femininos, chamadas também de circuncisão feminina, compreendem vários tipos de práticas.
• A abscisão consiste no corte parcial ou total do clitóris. A abscisão pode ser realizada logo após o nascimento da menina, depois de meses ou anos, ou na entrada da puberdade. É sempre praticada por mulheres anciãs com algo cortante que pode ser navalha, faca ou pedaço de vidro, sem preocupações com a assepsia.
• A labiotomia é a extirpação dos grandes e/ou pequenos lábios, muito praticada na Somália, onde se estima que 98% das mulheres foram submetidas a esse procedimento doloroso. Está difundida também na Eritréia, Etiópia, Serra Leoa, Sudão, Quênia, Mali e Burkina Faso. Embora sejam países de maioria islâmica, a prática não é ligada a preceitos corânicos que prescrevem somente a circuncisão masculina. Existem documentos que indicariam como essa tradição já era praticada há mais de 6 mil anos.
• A infibulação é o procedimento em que a vagina vem quase totalmente costurada, deixando somente uma apertura para o escoamento da urina e do sangue menstrual. Em algumas tribos, se introduz um pequeno canudinho – fíbula – para manter a abertura. Muitas vezes com a abscisão do clitóris, a infibulação é realizada na puberdade e pode ser efetuada outras vezes durante a vida da mulher. Antes do casamento, mulheres anciãs reabrem a sutura para propiciar o ato sexual e o parto.
A repetição da infibulação provoca distúrbios psíquicos além de hemorragias e infecções na região genital, que podem conduzir à esterilidade, infecção e morte da mulher.
Fonte: Feridas para sempre, Revista Mundo e Missão:
http://www.pime.org.br/mundoemissao/mulhersempre.htm

Stop-FGM. Stop às mutilações genitais femininas”, campanha lançada pela Associação italiana de mulheres para o desenvolvimento (Aidos), em colaboração com a Associação das mulheres da Tanzânia (Tamwa) e com a “Organização não há paz sem justiça”. Para acessar: www.stopfmg.org

***
É uma indecência imoral totalmente indigna como eles invertem as lógicas para culpabilizar crianças indefesas! É esta a transmissão que nos ocultam? Esta a violência selvagem a que, ainda, estamos submetidos? Os filhos não são propriedade do pai e a mulher não é propriedade dos homens. Até quando, conviveremos com esta barbárie? Morte ao pai onipotente!
Queremos nossos direitos!

sábado, 24 de julho de 2010

Vitimologia, uma virada na história

É preciso que a sociedade não abandone mais as vítimas pois isto dá um forte sinal aos agressores e aos seus cúmplices dando-lhes razão para pensar que são as vítimas que estão erradas e que devem sentir vergonha, se esconder e sobreviver sozinhas sem fazer onda, até mesmo desaparecer. A impunidade dos agressores está então garantida. A vergonha deve trocar de campo, a sociedade deve ser totalmente solidária e protetora e deve respeitar os direitos humanos e pedir justiça. As vítimas, invés de serem consideradas como menos que nada, devem, ao contrário, se tornar, aos olhos da sociedade, pessoas hiper preciosas que é preciso proteger, apoiar e envolver como prioridade!


Dr. MURIEL SALMONA – 11 de janeiro de 2007

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Expostos ao risco -- Mirian Giannella

As consequências dos abusos na infância e o 

estresse pós-traumático


Milhares de crianças por todo o mundo são vítimas de incesto, de abusos físicos e sexuais e do tráfico para fins de exploração sexual.
As conseqüências para as vítimas são desastrosas, afetando toda a vida desses sujeitos colocados em lugar de objetos passivos ao serviço deles. Sem saída senão a morte, obrigados a vender seu corpo por micharia, a se drogar para aceitar a degradação. Desvalorizados, desmoralizados, humilhados, destituídos da dignidade humana, escravizados, imobilizados, o que lhes dá lucro, portanto prazer.
Há milênios, usam de estratégias perversas para expropriar os irmãos de seus direitos inalienáveis, portanto, há ruptura de contrato social, dos códigos de ética por parte daqueles que deveriam nos proteger! Sociedade criminosa! Todos omissos confundindo a vítima com o criminoso, para a punição das vítimas. Esta é a estratégia deste jogo perverso em que eles sempre ganham contra indefesos.
Estamos expostos ao risco, ameaçados de morte por quem deveria nos proteger! Não se tem a quem apelar?

Os sintomas do estresse pós-traumático

Tal ruptura intencional é que reitera o estado de estresse pós-traumático que captura a vítima indignada com a desmoralização constante e a recusa da aceitação dos fatos. Não há reparação? Depois dos abusos, o cinismo da sociedade, a omissão, a ignorância. Crianças como presas indefesas do tráfico de todo tipo.
A vítima fica em estado de estupefação, fica siderada, com o trauma atuando no pano de fundo, o que causa dissociação, divisão da psique, paralisia, anestesia, alternando com fases maníacas, de excitação. Possível bipolaridade entre mania e depressão, gerada pela psicopatia ambiente.
O trauma fica se repetindo e toma a forma de sonhos, pesadelos, ansiedade, reações exageradas e até violentas em sua defesa e, às vezes, a necessidade compulsiva da evocação dos fatos traumáticos.

Deve-se compreender que o dano fica pedindo reparação

Lembranças dolorosas retornam e aniquilam a auto-estima do sujeito, com depressão, idéias de suicídio, problemas na vida sexual com ausência de prazer denotam a interdição à vida causada pela ameaça de morte que o trauma significa.

A criança que teve seu corpo violado, fica arrombada, aberta a novas agressões, expondo-se à situações de risco. A vítima fica com o agressor dentro dela, fica identificada com o agressor, o seu desejo se torna o desejo dele, fica dominada, presa na armadilha enquanto objeto passivo, não consegue se desvencilhar. O agressor age por ela, a boicota, a agride, a manipula. Ela fica constrangida em um corpo que não lhe pertence mais.

Por isto, a vítima deve ser tratada e não deixada no abandono e negligência, todos se fazendo de surdos, destituindo-a da sua verdade, da verdade da sua história. A ferida pede tratamento para cicatrizar, o buraco deve ser cheio de amor e carinho para fechar. As artes são um bom caminho para a expressão das dores e feridas profundas, que significam sua morte em vida.

Um caminho para as vítimas

A vítima precisa se separar do agressor de qualquer forma, de todas as formas, separação tanto no simbólico, quanto no imaginário, como no real. As representações simbólicas fazem efeito de separação, colocam distância, assim escrever, desenhar e vivenciar através das terapias e teatro catártico são caminhos.

É preciso ouvir e sancionar o que a vítima, muitas vezes, criança sem os elementos para compreender o vivido, relata do que sente.

É preciso dizer à vítima que ela tem o direito de se defender, de dizer não, direito ao desejo e de escolher o seu projeto de futuro! A gente não nasce sabendo, mas tem uma noção, ainda não nomeada, e a realidade confunde. É preciso nomear os direitos. Precisa que a vítima comece a se defender e para isto basta ela saber que tem direitos! Aí começa a se separar a vítima do criminoso.

A omissão de todos é muito grave

É de importância capital para a vítima que se nomeie o crime e o criminoso e que a interdição seja colocada sobre o ato. A interdição que deveria recair sobre o ato imundo do abusador recai sobre todos os atos da vítima que fica com seu ser paralisado, fica ela interditada.

Para a vítima existe sempre o antes e o depois do trauma.

Ao denunciar, testemunhar, relatar a vítima se desinterdita e volta à vida, basta acompanhar e orientar, pois a sociedade é feita para encobrir a tirania, e é preciso vencer muitas barreiras da opressão ambiente.

É preciso dizer que o ato foi imundo, indevido, que foi invasão de privacidade, desrespeito, que o abusador não tinha esse direito, que todos devem proteger os indefesos, que as relações devem ser consentidas e não com adolescentes e crianças, seres em desenvolvimento.

Propiciar um lugar de sujeito ativo à vítima dando-lhe possibilidade de expressão e ouvindo-a, sancionar a sua verdade.

Mirian Giannella é socióloga e psicanalista, coordenadora do
Observatório da Clínica

Blog Apoio às vítimas
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