segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os patinhos feios de Boris Cyrulnik

Trechos relativos ao trabalho criativo

Lastimo não o ter encontrado antes, enquanto Jean Laborde. Ouvia frequentemente referência à Laborde. Estou maravilhada, já não estou mais sozinha trilhando a senha da resiliência!
O trabalho de pesquisa que ele efetuou sobre populações afetadas por catástrofes é denso e pormenorizado, aprofundando e desenvolvendo os diferentes traços dos feridos, diferentes estratégias de sobrevivência através da criação de saídas possíveis. “Aliás, a sabedoria nos ensina que “criar” significa, na língua da Igreja, “fazer nascer do nada, trazer ao mundo uma criação que não existia antes!” Diante do nada, quais são as nossas escolhas?
Ou nos deixamos fascinar, arrebatar pela vertigem do vazio até sentir a angústia da morte, ou nos debatemos e trabalhamos para preencher esse vazio. No início, sentimos a energia do desespero, uma vez que o vazio está vazio, mas, assim que aparecem as primeiras construções, é a energia da esperança que nos estimula e nos compele à criação para sempre, até o momento em que, no fim da vida, “morremos em plena felicidade por nossas infelicidades passadas.” Karen Blixen analisa o mesmo processo de resiliência que Cioran: a pressão para a metamorfose que, graças à alquimia das palavras, dos atos e dos objetos, consegue transformar a lama do sofrimento em ouro da “criação, que é uma preservação temporária das garras da morte” .
O despertar da criatividade necessita uma falta. “A criação do símbolo decorre da perda do objeto que antes trazia total satisfação.”
Compreende-se que o mito do duplo ou a magia do espelho possuam um efeito euforizante, à beira da angústia, pois é se havendo com a morte que se faz nascer uma imagem.
Reconhecer a perda até a morte e enfrenta-la para ressuscitar o amor perdido está no “berço da cultura humana." E para que essa impressão passe da perda ao progresso, basta um pequeno gesto ou uma simples palavra que oriente a criança para a criatividade e faça nascer nela o maravilhamento da magia.
A arte não é um lazer, é uma pressão para lutar contra a angústia do vazio... As crianças brutalizadas não têm escolha. O que elas conseguem transformar em hino à alegria é a cacofonia do desespero. É pela representação que elas tomam seu destino em mãos. O desenho toma forma narrativa em que a criança expressa e dirige a alguém seu mundo íntimo. O talento consiste em expor sua provação numa intriga engraçada. O talento supremo consiste em expor sua infelicidade com humor. Quando essa metamorfose da representação é possível, o acontecimento doloroso fará o mesmo caminho no teatro ou no desenho. O humor não é o escárnio da ironia nem a negação da agressão, nem mesmo a transformação de um sofrimento em prazer. É a memória do trauma, sua representação que se torna menos dolorosa quando o teatro, o desenho, a arte, o romance, o ensaio e o humor trabalham para construir um novo sentimento de si mesmo.
Os torturados ou filhos de torturados reelaboram a imagem de si mesmos pela ação extrema e pela reflexão séria. Não pelo humor. A maioria das vezes engajam-se em ações militantes...
Quando os traumatizados não conseguem dominar a representação do trauma simbolizando-o através do desenho, da fala, do romance, do teatro ou do engajamento, então a lembrança se impõe e captura a consciência, fazendo voltar incessantemente não o real, mas a representação de um real que os domina.

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Magia diz: Por favor, não retirem aos torturados a possibilidade do humor, do jogar com as palavras, do resignifica-las, pois não há outra coisa a fazer. Aliás, o humor advém exatamente do reencontro com o trauma, com o fantasma do pai apavorante, com o esqueleto do terror dos anos de chumbo durante a infância no quarto de dormir... Momento altamente liberador da vida! Sim, vivi dos meus insights! E quando revi o esqueleto/múmia em análise, eu ri, sem saber bem por quê. Foi um riso catártico. Como um renascimento! --

Conclusão
Há previsões que no século XXI as exclusões vão se agravar. Quando uma criança for expulsa do seu domicílio por um problema familiar, quando for colocada numa instituição totalitária, quando a violência do Estado se estender ao planeta, quando ela for maltratada por aqueles que deveriam lhe proteger, quando uma avalanche de sofrimentos a soterrar, será preciso agir sobre todos os momentos da catástrofe: o momento político para lutar contra os crimes de guerra, o momento filosófico para criticar as teorias que as preparam, o momento técnico para reparar as feridas e o momento resiliente para retomar o curso da existência. A vida é demasiado rica para se reduzir a um discurso. É preciso escreve-la como livro ou canta-la...
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Magia diz: Achei esta frase muito boa: "A slave is one who waits for someone to come and free him." Ezra Pound
Não se deve mesmo esperar do outro, o que recebemos dele, vem quando menos se espera e só sabemos depois, quando aquilo é confirmado por ressoar na nossa experiência.