segunda-feira, 8 de junho de 2020

Libertação sexual


"Libertação sexual": QUANDO A DOMINAÇÃO MASCULINA SE REINVENTOU
 
Entrevista com RICHARD POULIN
Por Francine Sporenda
Data: 19 de fevereiro de 2018
Traduzida por Mirian Giannella
 
Richard Poulin é Professor Emérito de Sociologia (Universidade de Ottawa) e Professor Associado do Instituto de Pesquisa e Estudos Feministas (UQAM). É autor de livros sobre indústrias sexuais, questões étnico-nacionais, violência assassina, bem como socialismo e marxismo. Ele dirige "M publisher" e acaba de publicar "A Culture of Aggression, Masculinities, Sex Industries, Serial and Mass Murders" (1).
 
F.: Você diz que o capitalismo recuperou o sexo. Nesta sexualidade mercantilizada, a injunção para gozar é "agora uma condição de saúde e equilíbrio mental". Antes, o prazer era proibido às mulheres, agora tornou-se obrigatório. Quais são as consequências dessa injunção para as mulheres — e o que elas ganharam na troca?
 
RP - Fala-se de "revolução sexual" e de "libertação sexual", mas acho que em retrospectiva devemos falar sobre "liberalização sexual". Para quê? A liberdade sexual (obtida através da pílula anticoncepcional) certamente permitiu a dissociação da sexualidade e da reprodução e permitiu tirar esse peso que sempre caiu sobre as mulheres: o terror da gravidez indesejada. Também tornou mais fácil para os homens acessar corpos femininos. Mulheres jovens que não davam, especialmente as dos círculos militantes, eram desaprovadas, consideradas conservadoras ou reacionárias, puritanas, reprimidas, etc. Então a pressão era enorme. E o homem que não conseguia  seduzir facilmente mulheres se sentia mal, inadequado, incapaz.
 
Então, muito rapidamente, o dever de desempenho se impos ao mesmo tempo que o diktat da juventude, da magreza anoréxica e da feminilidade exacerbada. A moda unissex deu lugar a uma sexualização fixa de atributos. A dominação masculina foi renovada avançando "mascarada, sob a bandeira da liberdade sexual" (Anne-Marie Sohn). E a liberalização sexual causou uma explosão na mercantilização do sexo.
Existe essa injunção de gozar para as mulheres, e torna-se possível na medida em que descobrimos que elas têm o chamado "ponto G". Essa descoberta leva a uma otimização do desempenho no coito e à obrigação de múltiplos prazeres. Além disso, capacita as mulheres para o seu gozo e, no mesmo movimento, descapacita (novamente) os homens. Dessa forma, abre caminho para um "regramento sexual" renovado. A injunção para gozar é agora uma condição de saúde e equilíbrio mental. Em suma, as mulheres que não encontram seu "ponto G" devem se sentir culpadas por não terem sucesso em ter um orgasmo vaginal em vez de um orgasmo clitoridiano. E também sabemos que hoje em dia muitas mulheres jovens, na faixa dos 30 e 20 anos que vão ao ginecologista reclamam de dor durante a relação sexual: não funciona como deveria, elas têm muita dificuldade em assumir essa ideia que elas devem realizar: a de que não apenas elas devem fazer o parceiro gozar, mas elas também devem gozar absolutamente. E parece cada vez mais difícil e complicado para um número delas ser capaz de chegar ao orgasmo, ainda mais se se tem que ser necessariamente vaginal.
 
Mas essa injunção para gozar anda de mãos dadas com outra: a de ser bela, de prestar atenção ao corpo, de estar à escuta do outro e de seu corpo, que o corpo deve ser atraente para o outro, de usar todos os meios para torná-lo. Também deve assistir pornô para entender o que dá prazer aos homens, o prazer dos homens estando ligado à sua própria objetificação: tornar-se um objeto de desejo é algo que parece ser extremamente importante. Revistas femininas transmitem isso de forma espantosa, assim como revistas para adolescentes. Então, há um bombardeio constante sobre mulheres e jovens adolescentes, sobre o que deveriam ser. Como resultado, a cirurgia estética, especialmente para implantes mamários, aumentou significativamente. Temos os números para os Estados Unidos e Espanha, mas imagino que os números são semelhantes para o Canadá e a França. Dizem que você deve estar bem em seu corpo, mas para estar bem em seu corpo, você tem que transformar seu corpo. E essas transformações são ditadas pelos desejos dos homens: por exemplo, ter seios maiores. Assim, a pressão sobre as mulheres - sobre o corpo das mulheres e seu psicológico - é enorme. Também existe para os homens, mas muito menos. A depilação em homens está em ascensão, mas a depilação total em mulheres é imperativa. Fiz uma pesquisa com alunas sobre o uso de pornografia, e um estudo para complementar a pesquisa sobre transformações corporais. Houve uma correlação muito forte entre a idade do início do uso da pornografia e as transformações corporais. Transformações que poderiam ser temporárias, como a depilação, mas também poderiam ser permanentes, como a tatuagem. Descobrimos que quanto mais jovens começaram a usar pornografia, mais a depilação era uma norma, mais tatuagens havia, mais piercings, etc. Assim, a imagem do corpo feminino pornificado tornou-se um modelo de feminilidade.
  
F.: Então, em última análise, a sexualidade, de uma forma ou de outra, continua sendo a maneira fundamental de policiar as mulheres?
 
R.P.: Sim, e quando eu falo sobre a mercantilização do sexo, não é apenas que as indústrias do sexo estão comercializando os corpos de mulheres (e crianças), é também a ideia de que, para ficar bem na fita, você tem que adotar padrões que são os da indústria da pornografia. A depilação de pelos púbicos vem da chamada "guerra capilar" que ocorreu entre a Playboy, Penthouse e outras revistas desse tipo. No início da década de 1990, os púbis femininos não eram depilados em imagens pornográficas. Esta guerra levou a um excesso de licitude, temos que mostrar tudo, e o pelo era um obstáculo que impedia de ver os órgãos sexuais. Foi quando começamos a podar e raspá-los, e daí até a depilação total. Hoje você tem a parte superior do corpo corrigida por cirurgia plástica com implantes de mama que muitas vezes são enormes, até mesmo disformes, e a parte inferior do corpo depilada. É uma infantilização pornográfica dessa parte do corpo das mulheres - como se a mulher em cena fosse de idade pré-púbere, tivesse que permanecer uma garotinha - e, para a parte superior do corpo, há, pelo contrário, uma amplificação dos órgãos da feminilidade.
 
F.: Você cita o aviso da feminista Diana Russell de 1974 de que "se a libertação sexual não for acompanhada por uma libertação dos papéis sexuais tradicionais, pode resultar em uma opressão ainda maior das mulheres que antes". Foi isso que aconteceu, e que análise política você faz do conceito de "libertação sexual"? Houve um alinhamento para mulheres com objetivos sexuais masculinos, ou seja, mais acesso sexual aos corpos das mulheres?
 
R.P.: Sim, ainda podemos dizer que a pílula desempenhou um papel porque quando estava disponível, foi dito que as mulheres poderiam fazer sexo com todos os homens que quisessem sem ter esse medo de engravidar. Então foi uma liberação nesse nível. Mas ao mesmo tempo veio a injunção de que a mulher tinha que fazer sexo com vários homens...
 
 
F.: As mulheres não tinham mais nenhuma razão para negar-se aos homens, isso abriu acesso sexual quase ilimitado para eles?
 
R.P.: Sim, o acesso dos homens às mulheres tornou-se muito maior. E os homens se aproveitaram disso enormemente. As mulheres se beneficiaram? Eu não tenho certeza. Não posso falar por elas, mas deu aos homens um maior acesso às mulheres. Esse maior acesso às mulheres foi acompanhado por uma explosão de pornografia e prostituição. Isso é paradoxal, porque poderia ter sido assumido que um maior acesso às mulheres teria reduzido a indústria da prostituição, o contrário aconteceu. Assim, para os homens, o acesso aos corpos das mulheres foi multiplicado não só no namoro, mas no sexo pago. Isso me faz pensar que não vimos libertação sexual, mas liberalização sexual: por volta dos anos 1990, houve uma explosão da mercantilização e objetificação dos corpos das mulheres em todo o mundo.
 
F.: O que você acha da tese feminista de que o crescimento da pornografia (juntamente com o retorno da religião fundamentalista) constitui uma "vingança simbólica dos homens diante do desenvolvimento da afirmação e autonomia das mulheres"? E que a pornografia permitiria que os homens recuperassem o terreno perdido como resultado dos avanços feministas?
 
R.P.: Na minha pesquisa sobre pornografia nos anos 1980, antes da Internet, entrevistei um dos homens que publicaram a revista pornô canadense Rustler. Ele disse que o que fez a revista vender melhor foram fotos de mulheres ajoelhadas na frente de um homem fazendo sexo oral nele. Para ele, era o próprio símbolo do fato de que as mulheres eram submissas aos homens, e que se os homens gostavam dessas fotos, era uma espécie de vingança contra o movimento feminista. Essa foi a explicação dele, e acho que tem um passado de verdade. A pornografia tornou-se um meio simbólico para os homens reduzirem as mulheres a um status menor do que eles. O movimento feminista tem afirmado a autonomia e a igualdade das mulheres, mas a pornografia diz que a igualdade é impossível. Essa inferioridade pornográfica levanta a questão das relações de gênero, mas também levanta a questão do racismo. O status dos negros na pornografia é um status animal: um homem negro é um garanhão. Essa animalização, que é uma forma de inferiorização, também se aplica às mulheres no cotidiano. Na França, o sexo de uma mulher é chamado de chatte, de gata. Essas comparações com animais são legião quando se trata de mulheres e negros, porque um animal não pode ser igual a um homem. Um homem branco tem o poder e o direito de treinar um animal, assim como ele tem o poder de treinar uma mulher ou um homem negro. Há toda uma imaginação masculina de inferiorização e subjugação de mulheres, negros e asiáticos etc. E só homens brancos escapam dessa animalização.
 
F.: Ouvi clientes de prostituição dizerem que se eles usavam prostitutas era porque as mulheres tinham se tornado impossíveis, muito exigentes, arrogantes etc., e que na prostituição eles encontravam mulheres submissas, a serviço dos homens, como nunca deveriam ter deixado de ser...
 
R.P.: Sempre tentamos legitimar o que fazemos por todos os meios ou pretextos, e isso, do ponto de vista dos homens, nunca é nossa culpa. Este é um elemento básico da tradição judaico-cristã com a expulsão do paraíso terrestre: é culpa de Eva se alguém foi expulso do paraíso, Adão é completamente inocente, ele não entendeu o que estava acontecendo. Por definição, é Eva quem é responsável pela queda humana. E este é sempre o caso: para os homens, são sempre as mulheres que são responsáveis por suas próprias ações, nunca eles mesmos. Os homens são infantis... Uma criança diz: "A culpa não é minha, é dos outros." Acho que esses homens estão frustrados, na medida em que, o que procuram na prostituição, nunca conseguem. Então, se eles não têm, a culpa é das mulheres. Pesquisas de "clientes" de prostituição e prostitutas mostram que esses homens funcionam como aqueles indivíduos que absolutamente querem obter o modelo mais recente do i-phone, mesmo que o deles ainda funcione muito bem. Portanto, há um frenesi de consumo permanente porque estamos insatisfeitos com o produto que temos, pois estamos insatisfeitos com a relação com a mulher prostituída e achamos que da próxima vez será melhor. Nunca é melhor, então envolve uma fuga pra frente que leva a uma demanda constante de consumo.
 
F.: Quais são as consequências da pornografia nas relações de gênero? Como pode a noção de amor heterossexual, especialmente amor "romântico", sobreviver em uma sociedade onde a pornografia onipresente dá uma imagem tão degradada de mulheres (e homens)?
 
R.P.: A pornografia não é a única questão, é além de outros fatores sociais, mas usuários de pornografia, pornófilos, estão sofrendo com os efeitos desse consumo em suas vidas sexuais. Esses efeitos foram documentados: esses homens desenvolvem disfunção sexual erétil e têm dificuldade em ejacular com uma "mulher real". Há também incitação à violência sexual: nos Estados Unidos, várias pesquisas mostraram que, entre os jovens usuários de pornografia, a ideia de que podem agir e estuprar é muito forte. Outra das consequências da pornografia entre muitos jovens — porque o consumo de pornografia começa cedo— são os complexos corporais. Obviamente, quando você contrata um garanhão, é porque ele tem qualidades físicas, como ser capaz de fazer sexo sob demanda na frente das câmeras, e tem um pênis maior que a média. Os jovens que olham isso e comparam com seus próprios corpos, lhes dá complexos sobre seu físico. Isto é para garotos. Mas para as mulheres, as consequências são que elas se acostumam a comportamentos degradantes. Deixe-me dar um exemplo: em entrevistas com mulheres jovens, surgiu uma prática usada com muita frequência, foi a ejaculação facial. Algumas das jovens que entrevistamos concordaram em receber esperma em seus rostos, mesmo que achassem degradante, para agradar ao namorado. Os caras pensaram que não era um problema e até mesmo que era divertido. Assim, se induz comportamentos nos quais a degradação do outro se torna um simples jogo sexual normal.
  
F.: A ampla disseminação da pornografia e a normalização da prostituição mudam radicalmente a relação entre homens e mulheres, em todas as sociedades... Veja o que está acontecendo na Alemanha.
 
R.P.: Na Alemanha, cerca de dois terços dos homens pagaram por sexo, no Canadá é cerca de 11%, na França, cerca de 12,5%. É óbvio que, em uma sociedade como na Alemanha, a visão das mulheres que os homens têm deve ser diferente da de uma sociedade como a minha ou a sua. Isso induz uma visão das mulheres como estando disponíveis para os homens, e se traduz na reação da garota que pensou que a ejaculação facial, afinal, não era tão degradante. Mas há uma distinção entre pornografia e prostituição: a pornografia é muito mais universal do que a prostituição. Na Alemanha, França ou Canadá, a pornografia é quase universal, e também mulheres a usam, não são mais apenas homens. A pornografia tem maior influência no imaginário coletivo e nas relações sociais de sexo do que a prostituição.
 
F.: Eu tenderia a pensar que a pornografia é um incentivo para a prostituição, e um manual de instruções para fazê-lo: pornografia é teoria, e prostituição é prática, a implementação de práticas sexuais propostas pela pornografia...
 
R. P: Você está certa, a pornografia pode até ser definida como propaganda em favor da prostituição.
 
F.: Pornografia seria performática?
 
R. P: Isso mesmo. Veja, por exemplo, o resistente. Muitas vezes em uma cena vemos o sexo do hardy, mas nunca seu rosto, e seu comportamento é o de uma máquina. Por outro lado, os rostos das mulheres são mostrados, porque mostrar seu "prazer" é imperativo. Além disso, a pornografia é uma das poucas áreas onde "atrizes" ganham mais do que "atores". Porque são elas que estão no centro da pornografia, não os homens. Na verdade, podemos substituir os homens por um vibrador, por animais, qualquer coisa.
 
F.: Você diz em seu livro que pornografia é um incentivo para agir, você cita estudos estatísticos sobre isso...
 
R.P.: Não apenas no ato, a pornografia incentiva a violência sexual, incentiva a objetificação, a mercantilização, é por isso que estou falando de pornografia como propaganda para prostituição. E não há limites. Publiquei algumas figuras sobre o assunto em um livro anterior, Early Sexualization and Pornography (Paris, La Dispute, 2009). Esses dados são irregulares, apesar da onipresença da pornografia em nossas sociedades. Por quê? Simplesmente porque há muito pouca pesquisa acadêmica sobre pornografia, como se o assunto fosse tabu, era uma questão de liberdade de expressão, e qualquer ataque a ela, inclusive através de pesquisas, seria repreensível, uma vez que ataca a primeira de nossas liberdades! No entanto, quando ouvimos as pessoas que trabalham no social, aprendemos mais sobre a influência da pornografia. Por exemplo, ao lidar com abusadores sexuais menores de 15 anos, palestrantes do Centro de Psicologia Forense de Montreal, que supervisiona menores abusadores sexuais, associam a precocidade dos agressores ao consumo pornográfico e à sexualização pública.
 
F.: Você aponta em seu livro que a violência contra as mulheres (como o assassinato em massa) não são atos impulsivos e que reduzir as motivações desses atos a fatores puramente psicológicos e individuais - uma infância infeliz, um pai ausente, "loucura" ou a famosa "mãe castradora" - obscurece os significados sociais de tal violência. Quais são os significados sociais dessa violência? 
 
R.P.: Assassinatos em massa (três ou mais vítimas) que não ocorrem na família, aqueles que ocorrem em escolas, em locais públicos, no trabalho, etc., são todos assassinatos masculinos. São homens que matam estranhos ou que estão fora de seu círculo íntimo. Se usarmos só a psicologia para explicar o ato do assassino, escondemos o fato de que é uma masculinidade que está em movimento, e isso é violento. Há assassinatos em massa por mulheres, mas isso acontece na família, e geralmente é a mulher que mata seus filhos, por todos os tipos de razões. Isso está acontecendo com menos frequência do que nas décadas de 1930 e 1940, quando aconteceu com mais regularidade. Era uma época de grande pobreza, mulheres que estavam sozinhas separadas de seus filhos porque a vida era muito difícil. Hoje, na família, geralmente é o homem que mata a esposa e os filhos, ou apenas as crianças. São sempre as mesmas razões dadas: em geral, é quando o homem percebe que sua esposa quer deixá-lo que ele toma essa atitude (74% dos casos). E se analisarmos como um "crime passional" ou como loucura de um homem que não aceita ser abandonado, perdemos o ponto: que são os homens que matam mulheres e crianças. Porque essas mulheres e crianças são percebidas como propriedade, e é inaceitável que seus direitos a essas pessoas lhes sejam tirados. Esse discurso é ouvido regularmente, mas é ignorado porque preferimos estudar a psicologia desses assassinos, apresentá-los como desequilibrados, invocamos conceitos freudianos, é a "mãe castradora", o "pai ausente" que são fornecidos como explicação. No entanto, nem todos os homens que têm um "pai ausente" e uma "mãe castradora" tornam-se assassinos. Então deve haver outros fatores além destes.
Enquanto esses assassinatos são explicados pela patologia dos assassinos ("eles perderam a cabeça"), eu os analiso a partir das características das vítimas. Essa perspectiva, radicalmente nova, nos estudos universitários, revela a dinâmica machista e racista, muitas vezes ignorada, nesse tipo de crime. Quando a mídia lida com os assassinatos de mulheres, geralmente se refere ao evento como um "drama familiar" ou um "crime passional", expressões que obscurecem a violência masculina. Quando se fala em assassinatos em escolas, a mídia regularmente se refere a "crianças que matam outras crianças" quando na realidade são meninos (100%) que matam. Assim, os discursos que instalam a violência apenas do lado da psicologia dos assassinos ("nenhum indício apontou tal ato de loucura") têm pouco interesse nos significados sociais machistas e racistas da referida violência. Eles se recusam a nomear essa violência, que é masculina, e, portanto, a escondem.
 
F.: Finalmente, você acha que há um ponto de partida biológico para a violência masculina, como as feministas essencialistas pensam?
 
R.P.: Como sociólogo, eu atiraria no meu próprio pé, se dissesse que sim! O que me retiraria a oportunidade de fazer o meu trabalho. Acho que é mais uma questão de socialização. Tive um colega que fez um trabalho de campo na Amazônia, no Wawana. Todos os comportamentos que conhecemos aqui, em nossa sociedade, eles não os conhecem lá: sem competição, sem competição entre homens, homens vão caçar na floresta pela manhã e voltam à noite. Se eles ficam na floresta por tanto tempo, é para permitir que os caçadores menos ábeis voltem também com suas presas. Não havia nada competitivo entre os homens, nem havia monogamia, então não havia ciúmes. Sem propriedade privada, um não quer ter o que o outro tem porque é compartilhado. Então é uma sociedade completamente diferente. É o que acontece nas sociedades matrilineares, na ausência de propriedade privada, o que torna os comportamentos diametralmente opostos aos que conhecemos em nossas sociedades. Portanto, a explicação biológica é irrelevante. Outra diferença interessante foi que quando esse colega lhes fez a pergunta "quem é o mais bonito?", os homens se recusaram a responder. Mas, no final, insistindo, este colega conseguiu uma resposta. Os homens disseram: "Nós somos os mais bonitos." Nessa cultura, os homens são vistos como mais bonitos do que as mulheres, porque na natureza, pássaros e animais machos são muitas vezes mais coloridos, mais ornamentados do que as fêmeas, e é por isso que eles pensam (ao contrário de nós) que não são as mulheres o "sexo bonito", mas os homens.
 
F.: Há culturas como a dos Masai, onde são os homens que se enfeitam, que se pintam, que desfilam...
 
R.P.: É realmente a socialização que explica a violência de algumas sociedades. Só porque você tem um pênis não significa que está condenado à dominação de um sexo sobre o outro.
 




domingo, 7 de junho de 2020

A GLOBALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO SEXO


Entrevista de Francine Sporenda sobre o livro
“A GLOBALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO SEXO
prostituição, pornografia, tráfico de mulheres e crianças”
de Richard Poulin
IMAGO
Traduzida por Mirian Giannella


 "O fenômeno da prostituição, incluindo a prostituição sagrada, 
é concomitante ao da degradação do estatuto das mulheres nas sociedades".


Richard Poulin é professor de Sociologia na Universidade de Otawa. Ele é o autor de "Violência pornográfica, indústria da fantasia e realidades" (edições Cabedita), "Globalização das indústrias do sexo" (edições Imago) e "Abolição da prostituição" nas edições Sísifo. Há quase 30 anos que publica numerosos trabalhos, obras e artigos sobre a prostituição e a indústria do sexo.


Esta entrevista data de 2007, foi realizada por Sporenda 
para o site de Isabelle Alonso http://www.isabelle-alonso.com/ 
Agradecemos a todos os que foram mencionados na sua republicação aqui.




S - O seu livro "Abolir a prostituição" começa por recordar algumas noções históricas sobre a prostituição, por exemplo, o fato de existirem sociedades sem prostituição e, sobretudo, que existe um elo fundamental entre o aparecimento da escravidão e o nascimento da prostituição.
Na origem — e este é um traço de várias culturas, Grécia, Oriente Médio, etc. — os vencedores numa guerra matavam todos os machos e reduziam as mulheres à escravidão, guardando-as como servas, concubinas e reprodutoras para o seu uso pessoal, ou as prostituindo ou as vendendo aos proxenetas. Qualquer proprietário de escravos era, portanto, proxeneta, ou vendia os suas escravas em excesso a proxenetas; inversamente, só as escravas ou as estrangeiras eram prostitutas, e todas as escravas estavam ipso facto sexualmente ao serviço dos senhores, quer como concubinas quer como prostitutas.
Como a prostituição atual prolonga estas práticas arcaicas?

RP - Permita-me um esclarecimento: É no poema assírio de Gilgamesh por volta de 2000 a.C. onde figura pela primeira vez na história a menção da prostituição (sagrada). Esta prostituição sagrada é uma das primeiras formas de prostituição. O clero dos templos prostituía mulheres e meninas e açambarcava os rendimentos da prostituição. Ainda hoje, esta forma de prostituição é praticada na Ásia, nomeadamente na Índia e no Nepal, bem como na África. Os pais colocam suas filhas em templos ou com padres valorosos para a vida. As meninas ainda não púberes iniciam-se nas atividades de devadasi na Índia, de Devadaki no Nepal e de trokosi no Togo, no Benim e no Gana.
O fenômeno da prostituição, e inclui a prostituição sagrada, é concomitante ao da degradação do estatuto das mulheres nas sociedades. Existe uma relação fundamental entre o desenvolvimento da escravidão e a prostituição das mulheres e o estatuto muito inferior das mulheres "livres". O sexo tarifado e a escravidão são parceiros naturais da Antiguidade, num mundo tramado por e para o homem «livre». Segundo, a historiadora Catherine Salles, a regulamentação da prostituição em Atenas, na época de Sólon, «testemunha o desdém geral que suscita o sexo feminino». Demóstenes expõe em termos tão breves quanto precisos como é a vida sexual ideal dos homens de d'Atenas: «Esposamos a mulher para ter filhos legítimos e uma guardiã do lar, temos companheiras de cama para nos servir e nos dar os cuidados cotidianos, temos as hetairas para o gozo do amor”. As companheiras de cama são escravas.
Em Atenas, as mulheres e meninas das casas públicas são designadas pelo termo porne, que significa etimologicamente «vendida» ou «à venda». A palavra “porné” não se refere à prostituição, mas ao fato de terem sido vendidas ou compradas no mercado de escravos. Como em qualquer mercado segmentado, algumas partes deste mercado se destinam aos ricos e poderosos, enquanto outras às bolsas mais modestas. Acima das mulheres e meninas prostituídas nos lupanares do Estado, as diteríades, temos as aletrades, e acima destas as hetairas, ou «companheiras», ou seja, as prostitutas de luxo, algumas das quais foram libertadas pelo seu senhor depois de terem sido suas escravas sexuais. Estas últimas são arrendadas por um período mais ou menos longo. Podem ser meninas bem jovens: as hetairas compravam escravas jovens e criavam filhas para alimentar bordéis. A menina nascida de uma hetaira tinha o seu caminho traçado, a prostituição.

O fenômeno da prostituição, inclusive a prostituição sagrada, é concomitante também ao aparecimento dos mercados. Se as primeiras formas de prostituição adotaram um caráter religioso, foi porque os primeiros mercados se deram ao redor dos templos, e estes serviam de armazém de cereais. Lugares de comércio, foram lugares privilegiados das primeiras formas de mercantilização sexual de mulheres e crianças, da submissão do seu sexo ao prazer masculino, ao mesmo tempo que crescia o mercado de escravos. Ainda mais que os templos compravam escravos para os prostituir. É por isso que sustento que o clero dos lugares de culto foram os primeiros proxenetas conhecidos da história.

A prostituição atual prolonga essa via arcaica, não porque mulheres e crianças sejam juridicamente "escravas sexuais" - ainda que muitas vezes, porterem sido vendidas e compradas sucessivamente por cafetões e traficantes, seu destino tem muitas características comuns às dos escravos. Mas formalmente, nenhum estado apoia a escravização de um ser humano. A propriedade de cafetões e traficantes é ilícita, embora amplamente praticada. Os traços comuns são numerosos nos fatos, não nas leis. Os exemplos são numerosos e denunciados com grande ruído pela mídia. Ao mesmo tempo, essas piores formas de prostituição e tráfico de seres humanos costumam ser usadas para justificar aquelas que são descritas como "voluntárias". É por isso que muitas pessoas se opõem à prostituição "forçada" reduzida à categoria de escravidão, enquanto aceitam - algumas até a promovem - a chamada prostituição "voluntária". Os estados reguladores usam essa distinção em particular para legalizar a desigualdade entre mulheres e homens, que é o próprio fundamento da prostituição.

Fundamentalmente, a mercantilização prostitucional de mulheres e crianças significa torná-las produtos, bens de consumo, objetos sexuais. Nesse sentido, o parentesco entre a escravidão sexual da Antiguidade e a prostituição hoje de milhões de mulheres e crianças é patente. É uma indústria de massa da submissão das mulheres ao prazer dos homens e ao lucro dos cafetões, assim como se tratava de tornar mulheres e crianças à disposição de homens "livres" e senhores de escravos e angariar a renda da sua prostituição.

A indústria da prostituição explora e reforça a opressão das mulheres. Suas formas evoluíram de acordo com os modos de produção, mas são baseadas em duas invariantes intimamente entrelaçadas: patriarcado e mercantilização.



S - Você poderia se lembrar brevemente de como a prostituição se institucionalizou na Europa, qual foi o papel e as concepções da Igreja Católica sobre a questão e por que a solução da prisão de prostitutas finalmente prevaleceu?

RP - Historicamente, o cristianismo participou ativamente da prostituição de mulheres. Santo Agostinho, o mais ilustre defensor do cristianismo, diz: "Suprima as prostitutas, as paixões abalarão o mundo". As prostitutas são um "mal necessário" para a manutenção da ordem pública. A castidade das mulheres é exigida, os desvios dos homens são toleradas e a existência de mulheres e meninas prostituídas, consideradas essenciais para a realização masculina que garante a ordem social, é aceita e promovida. Mulheres e meninas prostituídas são notavelmente "responsáveis" pela pureza das mulheres "honestas".
A mulher, de acordo com essa ideologia religiosa, é a impura, a corrupta que trouxe o pecado à terra e perdeu o homem. Assim, o Concílio de Mâcon, no século VI, discutiu a questão de saber se a mulher tem alma ou não, e se é um ser humano: é por uma pequena maioria que a Igreja decide afirmativamente a questão.
Em 1259, quando Luís IX quis expulsar "garotas públicas" das cidades do reino da França, a Igreja se opôs sob o pretexto de que "a desordem se instalaria em todos os lugares por causa da paixão dos homens". Fechar as "mulheres devassas" em bordéis rapidamente se tornará uma preocupação para as autoridades. Nos países germânicos são estabelecidas "casas de mulheres". Em Wurzburg, o detentor de uma casa pública fazia, perante o magistrado da cidade, o juramento de ser "fiel e dedicado à cidade e de conseguir mulheres para ele". Em cada cidade francesa, os oficiais municipais ou reais são responsáveis ​​por fazer cumprir os regulamentos de prostituição, registrar as meninas e fazê-las pagar um imposto. O cafetão é um assunto público: são os notáveis, inclusive os da Igreja, que administram os bordéis públicos das cidades.
Em uma sociedade em que o status das mulheres é muito inferior ao dos homens e onde as mulheres são "propriedades" daqueles que têm poder, é costume tanto "proteger" pelo isolamento doméstico a virtude das “honestas mulheres” e suas filhas e disponibilizar aos homens outras mulheres que são prostituídas e fechadas nos bordéis. Também é comum ver homens se apropriando do corpo de mulheres por estupro (a época foi marcada, entre outras coisas, pela prática de estupro coletivo). A sociedade que relega a mulher e a menina ao confinamento, seja doméstico ou ‘nas zonas’, teme o sexo feminino. Como resultado, tudo contribui para o fato de que a sexualidade feminina suja dominada e subjugada ao sexo masculino.


S – O regulamentarismo foi política dos estados europeus no século XIX antes de finalmente ser abandonada após a Segunda Guerra Mundial na França. Sua posição é de que o neo-regulamentarismo recentemente adotado em certos países europeus leva à mesma observação do fracasso. Você pode nos dizer o por quê?

RP - O regulador francês Parent-Duchâtelet escreveu que "as prostitutas são tão inevitáveis ​​em uma aglomeração de homens quanto esgotos, estradas e lixões". A justificativa para a prostituição como "mal necessário" nos séculos 19 e 20, é higiênica. A ideia é prender mulheres prostituídas em bordéis para controlar, entre outras coisas, a propagação de doenças venéreas. É claro que há mais porque o objetivo do confinamento é manter o terror, constituir uma ameaça permanente às "clandestinas" e, assim, garantir a obediência às regras estabelecidas contra as mulheres (nunca homens). Qualquer mulher pode ser presa sob acusação de fazer michê na rua e ser ordenada a fazer uma visita médica. Ela é em seguida inscrita nos registros como "garota pública". A questão também é o controle da sexualidade feminina: mulheres e meninas “degradadas", "loucas de seu corpo", podem perverter os homens mais virtuosos. Também médicos e juristas, que esperam a adoção em todo o mundo do sistema regulador, concordam no início do século XX, em Viena, a Meca da prostituição juvenil, que a menina exerce na prostituição uma sedução própria do "eterno feminino” - o que alguns hoje chamam de “poder sexual”, “poder feminino” ou o empoderamento das meninas - e que, sem regulamentação, a desordem se instalaria e os homens seriam vítimas de mulheres e meninas.
Os bordéis regulamentados não impedem a prostituição de rua, e as clandestinas são significativamente mais numerosas do que as registradas, o que também é o caso nos atuais regimes regulatórios. Na França, antes de 1946, ano em que 1.500 bordéis oficiais foram fechados, estimou-se que uma em cada cinco mulheres prostituídas estava em bordéis, e apenas uma em quatorze não era uma "rebelde", isto é, estava registrada. O sistema acaba sendo um fracasso, a prometida "garantia de saúde" se mostrou ilusória. O enriquecimento de cafetões e traficantes, no entanto, não foi irreal.
O fracasso do atual sistema regulatório, que visa tornar a prostituição um "trabalho" e conceder direitos sociais às prostitutas que se registram, eliminar o controle do crime organizado na indústria, erradicar a prostituição infantil, melhorar as condições de "trabalho" das prostitutas é evidente. Este fracasso é particularmente reconhecido pelas autoridades dos países envolvidos. Na Alemanha, apenas 1% das 400.000 prostitutas (contabilizadas oficialmente em março de 2006), assinaram um contrato com cafetões "empresários". É este contrato que lhes dá acesso aos direitos sociais. Em Amsterdã, o município está tentando fechar um terço dos bordéis licenciados porque o crime organizado os controla. Uma organização que defende os direitos da criança observa um crescimento muito significativo da prostituição infantil, avaliado em 15.000. Finalmente, as condições para a prática da prostituição deterioraram-se e não melhoraram, exceto para uma minoria de prostitutas. A regulamentação da prostituição significa na prática: criminalização de prostitutas clandestinas, rebaixamento de prostitutas em zonas de tolerância, geralmente fora da vista, isoladas (geralmente em zonas industriais) ainda mais perigosas, ou o confinamento em bordéis sob o controle de cafetões que operam legalmente. A lógica desses bordéis é bloquear, tanto quanto possível, qualquer possibilidade de fuga do circuito por endividamento permanente (preço do aluguel, multas, serviços vendidos a preços proibitivos, etc.).
As prostitutas geralmente fogem deste sistema, apenas uma minoria está submetida, sendo a maioria rebelde ou ilegal. Este foi o caso durante o reinado do sistema regulatório na Europa Ocidental, do século XVII até a Segunda Guerra Mundial. Esses lugares não fazem nada para melhorar a segurança das moradoras, pelo contrário, uma vez que o controle de cafetões é fortalecido e a impunidade dos usuários aumentada.


S - A regulamentação atual, diferentemente da regulamentação vitoriana, afirma ser inspirada pelo desejo de proteger prostitutas e militantes em defesa de um novo direito para as mulheres, o "direito de se prostituir". O que você acha deste novo direito das mulheres?

RP - De fato, o atual sistema regulatório foi criado em nome dos direitos das prostitutas (ou de sua liberdade de “se prostituírem”) e os direitos dos clientes, que de se beneficiarem da legitimação dessa indústria. No entanto, como salienta Catharine MacKinnon, hoje o acesso dos homens às mulheres, via sexo pago, é “chamado de liberdade tanto para eles como para elas”, mesmo se a “liberdade” dos homens raramente seja invocada pelos estados reguladores.
Esse direito, no entanto, é o do acesso ao corpo e ao sexo das mulheres.
A globalização dos mercados é, em todos os textos internacionais ou europeus, um valor aceito e comum. A mercantilização do ser humano é autorizada, desde que não seja abusiva ou não seja "forçada", em certas condições. Formas legais de tráfico são permitidas. A prostituição não é mais vista como forma de subjugação do sexo feminino aos homens e ao sistema patriarcal; é doravante um "direito" e uma "liberdade". Os anos 90 foram caracterizados pela mercantilização sexual de mulheres e crianças em benefício do sistema de prostituição e proxeneta, em nome da implementação de certos métodos de sua regulamentação.
A prostituição, legal ou ilegal, não é organizada para as prostitutas, ela as comercializa ou monetiza. É organizado por um sistema proxeneta em favor dos cafetões. Onde estão os proxenetas e os cafetões nas palavras daqueles que defendem a prostituição como trabalho? Na melhor das hipóteses, os proxenetas só aparecem como partes contratantes, como clientes. Eles têm "direito" de consumir prostitutas, uma vez que é uma questão de lei contratual burguesa: é um acordo concluído entre duas pessoas que consentem (como se a terceira pessoa, o cafetão, nunca estivesse envolvido). Por que não defender outra opção do consumidor, a de ver a mercadoria renovada periodicamente - o tráfico para fins de prostituição não é usado exatamente para isso? De fato, esse tráfico não representa um problema para eles, uma vez que também é considerado "voluntário" e é assimilado à migração de "profissionais do sexo"? Talvez eles também tenham direito a uma maior qualidade dos produtos? Na Alemanha, todas as empresas com 15 ou mais funcionários, incluindo bordéis, agora devem "contratar" aprendizes sob pena de multa financeira! Que pai sensato encorajaria sua filha a seguir um aprendizado numa academia de Eros?
O "direito" à prostituição significa uma regressão do estatuto de mulheres e crianças. Agora, em muitos países dependentes, bem como nos do antigo bloco soviético, sob o impacto das políticas de ajuste estrutural e da economia de mercado, mulheres e crianças se tornaram as cccnovas "matérias-primas" (Novos recursos brutos na literatura inglesa) exploráveis ​​e exportáveis ​​no âmbito do desenvolvimento do comércio nacional e internacional. Governos como o da Tailândia não hesitaram em falar da "necessidade de sacrificar uma geração de mulheres" para permitir o desenvolvimento do país. O que mostra o que significa esse "direito".


S - Na Europa, os estados reguladores - Alemanha e Holanda - baseiam seu reconhecimento da prostituição na distinção entre prostituição legal e tráfico ilegal. O que você acha dessa distinção?

RP - serve apenas para justificar a prostituição de dezenas ou mesmo centenas de milhares de mulheres e apoia o tráfico de mulheres para fins de prostituição. Definir prostituição ou tráfico para fins de prostituição por coerção ou falta de coerção, por consentimento ou falta de consentimento, por sua legalidade ou ilegalidade implica que não é mais necessário analisar a prostituição como tal: seu significado, seus mecanismos, sua inscrição nas relações de mercado e patriarcais, seu papel na opressão das mulheres, etc. A legitimação da prostituição passa por esta operação de redução liberal.


S - Você diz que cumplicidades economicamente rentáveis existem em todos os níveis, onde quer que a prostituição seja regulamentada; você pode nos dar alguns exemplos?

RP - O governo da Holanda cobra da prostituição não clandestina, em impostos e taxas, um bilhão de euros por ano. Ele é o principal cafetão do país.
Em escala planetária, a prostituição e o tráfico de mulheres e crianças não podem, portanto, ser espontâneos. Os movimentos populacionais que envolvem centenas de milhares, até milhões de pessoas a cada ano, implicam necessariamente uma organização bem estruturada, com ramificações internacionais, inúmeras cumplicidades, enormes meios financeiros, com muitos recrutadores, agenciadores e transportadores, guardas, "treinadores", carcereiros e assassinos.
Para ilustrar, vamos dar uma olhada na indústria do turismo de prostituição. Segundo a UNICEF, afetou 10% dos viajantes internacionais em 2004, ou 71,5 milhões de turistas sexuais.
Esse setor está organizado como qualquer outro setor. É um setor em que indivíduos, como grandes organizações, trabalham. Em alguns casos, essa política pode chegar até à aceitação oficial de que o turismo é praticamente sinônimo de turismo de prostituição. O primeiro-ministro interino do Reino da Tailândia, Boonchu Rojanasathjen, disse que havia necessidade de criar novas atrações turísticas, "inclusive em áreas de certos prazeres considerados talvez de má reputação". O primeiro-ministro Chatichai Choonhave bateu na cabeça, observando que "os turistas vêm aqui porque nossas mulheres são muito bonitas". Em Madagascar, um funcionário explicou na rádio em 2006 que era necessário "incentivar a indústria nacional da prostituição a promover o desenvolvimento do turismo sustentável".
As conexões são, portanto, múltiplas; eles vão para o nível mais alto do estado (governo e serviço público). Em 1998, a OIT estimou a renda do turismo sexual na Tailândia entre US $ 33 bilhões e US $ 44 bilhões por ano. Lembre-se de que foi um general do exército real da Tailândia que, com a ajuda de um empréstimo generoso concedido, entre outros, pelo Chase Manhattan Bank, construiu as primeiras instalações de descanso e recreação e foi sua esposa quem organizou as primeiras excursões sexuais para soldados envolvidos na Guerra do Vietnã. A capital das autoridades do país foi construída nas costas de mulheres e crianças prostituídas.
Onde a prostituição é considerada vital para o desenvolvimento do país, bem como onde a prostituição é regulamentada, ocorre uma explosão nessa indústria e, portanto, uma explosão na renda monopolizada.
A prostituição é uma indústria na qual vendedores e vendedoras fazem fortuna e revezam-se na compra. Como em qualquer indústria ou comércio, uma multidão de pessoas se beneficia do fluxo de ‘mercadorias’; do cafetão ao intermediário, do recrutador ao dono do bordel, do funcionário corrupto da alfândega às redes internacionais de hotéis, do taxista à companhia aérea, da polícia à agência de viagens, do traficante ao Estado que recolhe impostos. Até a família pode se beneficiar disso. Todos recebem uma quantia em dinheiro direta ou indiretamente relacionada à prostituição de mulheres e crianças.

A indústria da prostituição representa 5% do produto interno bruto da Holanda, entre 1 e 3% do Japão, e em 1998, a OIT estimou que a prostituição representava entre 2 e 14% do total das atividades econômicas da Tailândia, Malásia e Filipinas.


S - Os recentes assassinatos em série de prostitutas na Inglaterra mostraram o elo de ligação entre prostituição de rua e a dependência às drogas na Europa Ocidental - todas as prostitutas assassinadas eram viciadas em drogas. Que pensamentos o inspiram ao observar isso?

RP - No Canadá, acaba de ser aberto o julgamento de Robert Pickton, acusado de 26 assassinatos de prostitutas de rua em Vancouver, a maioria de origem aborígina. A reação dos jornalistas, como na Grã-Bretanha, foi perguntar a especialistas se a legalização da prostituição proporcionaria maior segurança às prostitutas. Alguns especialistas concordaram. No entanto, Jack, o Estripador, estava matando prostitutas no Reino Unido regulador.
A pesquisa de Farley e Lynne sobre prostitutas de rua em Vancouver descobriu que 68% das prostitutas não viam a legalização da prostituição como uma solução para seus problemas, incluindo sua segurança. Como lembrete, é em Vancouver que o número de prostitutas desaparecidas é o mais alto do Canadá. As questões de segurança são, portanto, muito importantes, mas, apesar disso, a legalização da prostituição não parece ser a solução aos olhos das principais partes envolvidas. De fato, as pessoas prostituídas querem deixar a prostituição (95% de acordo com a mesma pesquisa), mas a sociedade não oferece os meios para alcançar esse desejo. Como a sociedade não desenvolveu serviços que permitam que as prostitutas se reorientem ou mudem de vida, elas geralmente não têm outra maneira de sobreviver do que permanecer ou retornar à prostituição.
A prostituição de rua está associada à dependência de drogas. Um fator, no entanto, deve ser destacado: a prevalência do uso de drogas é significativamente maior entre prostitutas do que entre não prostitutas, mas o abuso de drogas geralmente segue a entrada na prostituição e não precede. Obviamente, as drogas são úteis para as pessoas prostituídas: elas apoiam a prostituição, reforçando, em particular, o fenômeno da dissociação emocional. Mas a dependência criada as leva a continuar, se não a acelerar, as atividades de prostituição em condições cada vez mais arriscadas.


S - Em seu livro, você escreve: "o ideal para o cafetão é estabelecer controle suficiente para que a prostituta se torne sua própria guardiã e, ao mesmo tempo, reivindique com orgulho sua atividade"
Nos programas de televisão da França, Paris-Première, Odyssée etc., as únicas prostitutas convidadas que ouvimos são aquelas que dizem ter orgulho de se prostituir. Como você explica o sucesso da mídia no discurso da “prostituta feliz”?

RP - Não escrevi isso por acaso. Após "A globalização das indústrias do sexo", conheci muitas ex-acompanhantes que queriam compartilhar suas experiências. Em "Abolir a prostituição", eu queria integrar seus testemunhos. Algumas pretendiam se envolver na luta pela abolição da prostituição e visavam conscientizar as jovens. Entusiasmadas, voltaram para casa e, depois de dois ou três dias, entraram em contato comigo novamente para me dizer que era impossível, muito difícil, reviver o que elas absolutamente queriam apagar de suas vidas que tinham com dificuldade  reconstruído. Essas pessoas que revolucionaram suas vidas com sucesso não desejam aparecer publicamente.
Todas que conheci acreditavam que tinham feito uma escolha. Todas queriam acreditar que haviam forjado seu próprio destino. Aquelas que ainda acreditavam nele eram incrivelmente culpadas, mas a maioria delas não falava mais em termos de escolha, o que não explica nada em sua prostituição.
Muitos jornalistas me ligam para acessar o testemunho de prostitutas. Eles não conseguem entender que a grande maioria delas, mesmo com rostos embaçados e vozes distorcidas, se recusa a prestar-se ao exercício do programa de mídia. Não porque elas não tenham nada a dizer, mas porque esse exercício reviverá o estresse e a ansiedade que experimentam na prostituição. Suas memórias são muitas vezes incoerentes, ocasionalmente contraditórias, muitas vezes fragmentadas. Elas se lembram da cor dos tapetes ou das cortinas, mas raramente das prostitutas (de fato, salvo exceções, elas são integradas a um todo indiferenciado: o cliente). Imagens fortes as dominam, tornando-as muito emotivas. Elas poderiam garantir aos jornalistas que a prostituição é destrutiva, mas sabem que eles não ficariam satisfeitos com essa afirmação. Eles querem tirar o máximo de suco delas e enquanto elas querem apagar esse momento de suas vidas.

A vida ruim que muitas pessoas enfrentam é ignorada em favor de um discurso mais promocional e midiático e especialmente mais propício ao liberalismo. Aquelas que dizem que estão felizes com sua prostituição não apenas têm um discurso que vende mais na mídia, mas essa auto-justificativa de sua prostituição lhes permite afirmar que controlam sua vida (que não deve ser minimizada), também permite aos bem-pensantes, cafetões ou não, acreditar que as mulheres se prostituem porque sentem prazer, e não apenas para proporcioná-lo. Geralmente, quase sempre são as mesmas prostitutas que são convidadas pela mídia: é que não há muitas que concordam em jogar esse jogo e, portanto, de serem irremediavelmente definidas por um estatuto que, apesar de promovido, permanece estigmatizado, mesmo assim.


FONTES