Muito bom trabalho restaurando o lugar da vítima ativa que dá seu depoimento e faz sua denúncia separando-se do crime, do criminoso, do dano, do desejo do agressor, de extrema valia!
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O método da narrativa e a voz das vítimas de crimes sexuais
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O narrador pergunta a Urania, aquando do regresso desta à República Dominicana, 35 anos após o abuso sexual, e referindo-se ao seu pai:
(…) “Detesta-lo? Odeia-lo? Ainda? “Já não”, diz em voz alta. Não terias voltado se o rancor continuasse a crepitar, a ferida a sangrar, a decepção a esmagá-la, a envenená-la, como na tua juventude, quando estudar, trabalhar, se converteram num remédio de obsessão para não recordar.” Então sim odiava-lo. Com todos os átomos do teu ser, com todos os pensamentos e sentimentos que te cabiam no corpo. (…)”[8]
(…)“Ele tinha setenta e eu catorze – precisa Urania, pela quinta ou pela décima vez – (…)[9].
(…) Ela não resistia; deixava-se tocar, acariciar, beijar, e o seu corpo obedecia aos movimentos e posições que as mãos de Sua Excelência lhe indicavam. Mas não correspondia às carícias recebidas, e, quando não fechava os olhos, mantinha-os cravados na ventoinha do tecto. Então, ouviu-o dizer para consigo: “Rasgar a coninha de uma virgem excita os homens”.
– O primeiro palavrão, a primeira grosseria da noite – precisa Urania – Depois, havia de dizer piores. Foi nessa altura que me dei conta de que alguma coisa estava a passar-se. Ele tinha começado a enfurecer-se.(…)”[10]
(…)“Tenho quarenta e nove anos e ainda me sinto a tremer, uma vez mais. Estou a tremer há trinta e cinco anos, desde esse momento.
Estende as mãos e a tia, as primas e a sobrinha podem comprová-lo: estão a tremer.(…)”[11].
(…) Espero que me tenha feito bem contar-vos esta história tão movimentada. Agora esqueçam-na. O que está feito está feito. Já passou e não tem remédio. Outra pessoa teria ultrapassado tudo isto, sabe-se lá. Eu não quis nem pude. (…)[12].
(…) Nunca mais um homem me voltou a pôr a mão em cima, desde essa noite. O meu único homem foi o Trujillo. É como estás a ouvir. Cada vez que algum se aproxima de mim, e olha para mim como uma mulher, sinto nojo. Horror. Vontade de o ver morrer, de o matar. É difícil explicar estas coisas. Estudei, trabalhei, ganho bem a vida, é verdade. Mas continuo vazia e cheia de medo. Como esses velhos de Nova Iorque que passam os dias nos parques, contemplando o nada. Trabalhar, trabalhar, trabalhar até cair, vencida. Não é para que os outros me invejem, garanto-te. Mais depressa sou eu que tenho inveja de vocês. Sim, sim, bem sei, têm problemas, dificuldades, decepções. Mas também têm uma família, um par, filhos, parentes, um país. São coisas que enchem a vida. A mim, o meu pai e Sua Excelência transformaram-me num deserto. (…)[13].
(…)Perdoa-me ter-te contado estas coisas – beija-a Urania na testa – Foi um disparate. Mas trazia-as a arder cá dentro há tantos anos…(…)[14].
Enquanto passeava nas ruas de Santo Domingo, Urania exprime o seu repúdio pela forma como as mulheres são olhadas pelos homens nas ruas, uma das formas mais subtis de discriminação, nas sociedades machistas, vista como inofensiva, mas na verdade promotora da imagem das mulheres como objectos sexuais, e que afecta a totalidade das mulheres e das crianças do sexo feminino:
“(…)De quando em quando, de um veículo assoma uma cabeça masculina e por um instante os seus encontram-se com dois olhos varonis que lhe olham os seios, as pernas ou o rabo. Esses olhares. (…) Em Nova Iorque já ninguém olha para as mulheres com tanto descaramento. Medindo-a, sopesando-a, calculando quanta carne há em cada uma das suas mamas e músculos, quantos pêlos no seu púbis e a curva exacta das suas nádegas. Fecha os olhos presa de uma leve vertigem. Em Nova Iorque, já nem os latinos, dominicanos, colombianos, guatemaltecos, olham assim. Aprenderam a reprimir-se, compreenderam que não devem olhar para as mulheres como os cães olham para as cadelas, os cavalos para as éguas, os porcos para as porcas.”[15]
A segunda história refere-se aos sentimentos de uma criança vítima de abuso sexual, dos quais tomamos conhecimento, através das palavras por si escritas no seu diário. Aos 14 anos, a criança foi depor em tribunal, e, na sequência dessa experiência e do re-contacto directo com o abusador, pois não tinha sido autorizado, pelo tribunal, o recurso ao testemunho por vídeo-conferência, desenvolveu um conjunto de sérias perturbações emocionais e comportamentais que levaram os pais a procurar apoio psicológico para ela. As suas palavras foram transcritas numa obra dedicada aos direitos das crianças, depois de ter dado a sua autorização para tal, à psicóloga que a acompanhava, com duas condições: nunca a identificar e fazê-lo com o objectivo de, através destas palavras, tentar alertar outras pessoas para o problema do abuso sexual de crianças[16].
As palavras pelo seu carácter íntimo, sincero e profundo permitem aos juristas colocarem-se na situação da vítima e sentirem a sua dor, um passo essencial para uma interpretação e uma aplicação humanista das normas de direito penal e de direito processual penal, que tenha em conta o sofrimento das vítimas. Os crimes sexuais contra mulheres e crianças não afectam, apenas, as vítimas, mas toda a sociedade. A família, as amigas das vítimas e pessoas que a ela estão emocionalmente ligadas, são também vítimas secundárias ou indirectas do crime. “A justiça é a alteridade absoluta”[17], colocarmo-nos no lugar da vítima e sofrer as suas dores. Sem esta atitude de empatia, não há justiça. Não há imparcialidade do(a) jurista nem compreensão da natureza humana, sem a integração das experiências das mulheres vítimas, na experiência de quem tem que tomar decisões judiciais, políticas ou sociais, que as vão afectar.
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