Data: 23 de maio de 2021
POR FRANCINE SPORENDA
Tradução Mirian Giannella
Em relação à questão da abolição da instituição prisional, as feministas elogiaram o modelo prisional sueco que seria exemplar porque se baseia na reabilitação de criminosos e afirmaram que a reabilitação de criminosos implementada na Suécia reduzira significativamente a violência masculina.
É bem possível que o modelo carcerário sueco alcance bons resultados para o crime econômico. Mas as estatísticas de estupro na Suécia não apoiam a afirmação acima, que se baseia no equívoco de que os países escandinavos são sociedades igualitárias. Para os crimes sexuais, cujas motivações são muito diferentes das do crime econômico, os números suecos não indicam que a reabilitação dos agressores tenha um impacto perceptível sobre essa violência.
Lembro-me esses números: a Suécia é o 6º país no mundo para o número de estupros, o número de estupros registrados em 2019 foi de 8 581, ou 85,8 por 100 000 habitantes. Para a França, em 2017 era de 24,4 por 100.000 habitantes (em 2019, pode ter aumentado um pouco), ou seja, 3,5 vezes mais estupros para a Suécia (1).
Podemos considerar que isso se explica pelo fato de que as mulheres suecas, vivendo em uma cultura em que a justiça é considerada menos patriarcal do que na França, são menos relutantes em registrar queixa do que as francesas. Uma definição diferente de estupro também pode ser um fator que justifica em parte esse diferencial.
Como em geral, as estatísticas de estupro podem ser difíceis de interpretar, a fim de determinar se as políticas suecas sobre violência masculina são eficazes, verificar o número anual de feminicídios na Suécia pode fornecer uma imagem mais clara. Em 2018, conta-se 33 feminicídios nesse país. Na França, no mesmo ano de 2018, foram 121 feminicídios (2).
A população da Suécia é de pouco mais de 10 milhões, a da França é de pouco mais de 67 milhões, ou 6,7 vezes maior. Um cálculo rápido permite saber qual seria o número de feminicídios se a Suécia tivesse o mesmo número de habitantes da França: 33 × 6,7 = 221,1. 221 mulheres mortas se a Suécia fosse tão populosa quanto a França - em comparação com 121 na França.
E aí, não se pode argumentar - e por boas razões - que as vítimas suecas fazem queixas com mais frequência, os números são claros, indiscutíveis: mulheres morreram, foram mortas por homens e seu número é contado e registrado pelos serviços estatísticos suecos. Paradoxalmente, a França, que não implementa uma política sistemática de reabilitação de homens violentos (estágios são oferecidos pela administração penitenciária em alguns departamentos), tem menos feminicídios e estupros do que a Suécia, que adota tal política desde 2002, com base na abordagem canadense.
Na verdade, é bem conhecida essa contradição entre a imagem dos países nórdicos, vistos como tendo alcançado um nível comparativamente alto de igualdade de gênero e, no entanto, apresentando um índice muito elevado de violência contra as mulheres (estupro, agressão sexual e feminicídio). é chamado de "paradoxo nórdico".
Continuando essas verificações nas estatísticas de violência contra as mulheres, no Canadá, que implementou esses cursos por várias décadas (aparentemente no início dos anos 1990) e cujo modelo inspirou a Suécia, a cifra de feminicídios é de 148 em 2018 para uma população de 37,06 milhões de habitantes para esse mesmo ano. Em comparação com os números franceses (121 em 2018 para 67 milhões de habitantes), encontramos a mesma situação da Suécia: um país que foi pioneiro em termos de estágios para homens violentos tem uma taxa de feminicídios maior que o dobro de outro onde esta prática não é generalizada: novamente, à primeira vista, a eficácia desses cursos não é óbvia.
A Espanha parece ser um modelo melhor a seguir na luta contra os feminicídios: 47 feminicídios em 2018 para quase 47 milhões de habitantes (46,94 exatamente). A Espanha, portanto, tem cerca de 1 femicídio por 1 milhão de habitantes, a Suécia mais de três vezes mais (3,3 femicídios por 1 milhão de habitantes).
Por que esse número significativamente menor na Espanha? Pode-se perguntar se é pelo fato de a Suécia confiar mais na reabilitação de homens que cometem crimes sexuais - método cujos resultados são, à luz destes números, pouco convincentes - enquanto a Espanha aposta mais na proteção das mulheres? Não seria uma das explicações para esta importante diferença estatística?
REABILITAÇÃO ATRAVÉS DE CUIDADOS
Quais são os conceitos e métodos na base desses cursos de reabilitação para homens perpetradores de violência sexual organizados nas prisões suecas? Na Suécia, os “agressores sexuais” são mantidos em prisões especiais (são 5 ao todo) e todos os perpetradores de agressão sexual que estão detidos podem ter acesso, se desejarem, a esses programas implementados por equipes treinadas (3).
Mas os presos por crimes sexuais têm pouco interesse nesses procedimentos, que recebem com grande resistência. Alguns os recusam e se limitam à negação, ao ódio às mulheres e à recusa de responsabilidade, e aqueles que concordam em participar, muitas vezes, se alistam porque a realização de um desses estágios permite que sejam transferidos posteriormente por bom comportamento, para uma "prisão aberta" onde gozam mais liberdade (4). As abordagens utilizadas são principalmente terapia cognitiva e comportamental (TCC) e multissistêmica (5). Estudos foram feitos para avaliar o impacto desses programas na reincidência de agressores sexuais tratados desta forma, e são inconclusivos: de acordo com uma pesquisa de 3.000 homens encarcerados por agressão sexual, as porcentagens de reincidência durante um determinado período, entre presidiários que concluíram um curso de reabilitação e um grupo de controle de agressores sexuais que não se beneficiaram dele, mostram diferenças mínimas (10,1% de reincidentes tendo concluído um curso em comparação com 13,6% não tendo feito) (6). Diferença de apenas 3 pontos, portanto considerada estatisticamente insignificante, ou seja, possivelmente devido ao acaso. As conclusões do estudo que cita estes números são que "é impossível tirar uma conclusão geral positiva sobre a eficácia do tratamento dos abusadores sexuais" (7). De fato, relata-se que quando se utiliza a castração química (às vezes em combinação com cursos de reabilitação), é esse método que, sem ser 100% eficaz, produz os efeitos mais marcantes (8).
Essa falha não é surpreendente porque a abordagem sueca de reabilitação para criminosos sexuais é baseada em uma premissa questionável: que os presidiários que cometem violência sexual cometem esses crimes porque sofrem de doenças mentais ou transtornos de personalidade tratáveis por uma abordagem psicoterapêutica. Porém, ao contrário da explicação estereotipada veiculada pelo discurso dominante para esses tipos de crimes: “estupradores são loucos, doentes”, mas os homens que estupram costumam ser normais e bem integrados socialmente; apenas 7 a 10% deles, dependendo dos estudos, se enquadram na psiquiatria (9), a normalidade e impunidade do estupro definindo com precisão o que se denomina “cultura do estupro”, e a palavra “cultura” indica o caráter social da prática da violência sexual.
Essa violência é essencialmente a consequência de uma relação de poder desigual entre os sexos, os homens tendo internalizado que seu status dominante lhes dá certos direitos sobre as mulheres, em particular de dispor delas sexualmente. Na medida em que essa noção dos direitos sexuais dos homens sobre as mulheres é uma norma comumente aceita em nossas sociedades, que os estupradores só levam às suas consequências extremas e penalizáveis, não podemos tratá-los com cuidado mais do que tratar os racistas com cuidado: não se pode tratar, individualmente, uma norma social internalizada, com uma abordagem psicoterapêutica. Esses tratamentos, atribuindo uma causalidade psicológica a esses estupros e tentando remediá-los por meio de abordagens relacionadas à psiquiatria, reforçam a negação social de seu caráter de fenômeno coletivo e os reduzem a comportamentos individuais aberrantes. Sendo a violência um instrumento essencial de controle masculino sobre a mulher, qualquer "tratamento" dessa violência, que não identifique corretamente as condições sociais que a produzem, não só não pode ter um impacto significativo sobre ela, como também contribui para perpetuá-la, mantendo a ilusão que a está reduzindo.
Mais grave ainda, se esses estágios de reabilitação parecem dar poucos resultados em relação ao seu custo, ficamos sabendo que no Quebec, seu financiamento no orçamento de 2021 é quase igual ao de abrigos para mulheres agredidas: em 5 anos, $19,8 milhões, em comparação com $22 milhões (10). Qual orçamento é dedicado ao financiamento de psicoterapias para suas vítimas? Mais uma vez, o patriarcado acerta um golpe duplo: os homens violentos se beneficiam de cuidados financiados pelo Estado (ou seja, pelos contribuintes, homens e mulheres), e as mulheres, vítimas de predadores sexuais, também devem financiar a reabilitação.
De acordo com as estatísticas acima, não apenas a eficácia da reabilitação de criminosos pelo sistema prisional sueco exemplar é questionável - e a Suécia não é um paraíso feminista - mas a violência contra as mulheres é maior lá do que na maioria dos países ocidentais que não adotaram essas políticas de reabilitação! No entanto, esse mito sueco é aceito sem exame porque valida as teses liberais sobre a redução da violência masculina pela reeducação de homens violentos e reforça as posições de uma franja feminista conhecida como "anticarcerária" (isto é, a convocação para a abolição das prisões). Outra razão pela qual esses estágios continuam a ser financiados, apesar de seus resultados inconclusivos, é que em torno deles (como em torno da mediação familiar) foi criada toda uma indústria de treinadores, conselheiros, mediadores, psicólogos especializados etc., que obviamente promovem a ideia de que esses cursos são a solução para a violência masculina. Com esses estágios, a sociedade fica com a consciência tranquila e pode permanecer na negação sobre as reais causas dessa violência.
As feministas devem questionar sistematicamente esses discursos que propõem soluções milagrosas para a violência masculina porque, no caso particular do "feminismo anticarcerário", suas propostas aparentemente empáticas e humanitárias, voltadas para substituir o encarceramento de criminosos por soluções alternativas, são portadoras de graves consequências para as mulheres. Em primeiro lugar, quando essas soluções são adotadas pelo sistema judiciário, como substituto a certos procedimentos penais, fornecem um pretexto para desjudicializar ainda mais o estupro e outros crimes sexuais, para desobstruir os tribunais que estão subfinanciados e sobrecarregados por uma carga de trabalho incontrolável (porque os tribunais estão saturados, 40 a 60% dos estupros, embora definidos como crimes pelo código penal, são ‘correcionalizados’, isto é desqualificados como simples delitos...
Claro, os crimes contra as mulheres são insuficientemente reconhecidos pelo judiciário, e os culpados gozam de ampla impunidade, mas na medida em que a pena de prisão é tanto o reconhecimento da gravidade desses crimes quanto a proteção, pelo menos temporariamente, contra aqueles que os cometem, as propostas do "feminismo anticarcerário", que pretendem retirar das mulheres as poucas garantias que obtiveram face ao crime sexual masculino, após décadas de luta feminista, constituem um retrocesso e um perigo potencial para as mulheres.
Em primeiro lugar, da maneira mais óbvia: pelo fato de que predadores terríveis seriam deixados livres e, na melhor das hipóteses, simplesmente engajados no processo de reabilitação, predadores dos quais uma proporção significativa reincidirá mais cedo ou mais tarde (12). Nem é preciso dizer que o preço das teorias das belas almas anticarcerárias seria pago pelas mulheres e crianças vítimas desses predadores. No entanto, embora seja óbvio que a reabilitação de agressores é problemática na melhor das hipóteses, esse feminismo anti-cárcere está encontrando um eco crescente, como evidenciado pelo impacto de um artigo de uma de suas porta-vozes do Quebec, Gwenola Ricordeau, publicado recentemente no siteVice (13). A autora observa que, sendo o estupro um crime em massa, o que prova que a dissuasão judicial funciona mal, então, devemos nos livrar dela. Raciocínio absurdo: se as condenações por estupro são muito poucas para serem dissuasivas, a solução é removê-las por completo? Não faria mais sentido condenar estupradores com mais frequência? E para isso conceder meios financeiros decentes à polícia e ao sistema de justiça, tratados como parentes pobres, para reduzir o número de correções e investigações concluídas sem acompanhamento?
Teses anti-prisão não são novas, movimentos de extrema esquerda, em particular com uma tendência anarquista libertária, têm apoiado essas posições por décadas, seu principal argumento é que a população carcerária é quase exclusivamente composta por homens pobres e racializados, vítimas de uma justiça estatal classista e racista, o que as estatísticas confirmam. Lembramos que na época da Segunda Onda Feminista, falocratas de esquerda alegavam proibir as mulheres estupradas por imigrantes de apresentarem queixas - porque a seus olhos era inaceitável enviar para as prisões do estado burguês homens pobres e vítimas de racismo; só a opressão de classe e "racial" importava para eles, a da "proletária do proletario" não os preocupava minimamente, a ignoravam soberbamente.
Podemos ver quais eram as prioridades desta esquerda revolucionária ultra-machista: o que dizia respeito aos homens era, por definição, sempre mais importante, a defesa dos direitos dos estupradores proletários e sua liberdade vinha antes da proteção das mulheres (muitas vezes também proletárias) que eles agrediam. As mesmas prioridades em Houria Bouteldja, que exortou as mulheres das minorias a não denunciarem os "irmãos" se eles as estupraram.
Percebemos as mesmas escalas de valores, os mesmos reflexos sexistas e a mesma ausência de referências feministas no artigo de Gwenola Ricordeau que prega a abolição do sistema prisional, e seu principal argumento é o mesmo de seus antecessores antiprisionais: a instituição prisional é injusta porque os homens presos por estupro e agressão sexual são predominantemente "pobres, de imigração ou história colonial". É óbvio que os agressores sexuais das classes altas, na maioria das vezes, escapam da prisão (foi o que apontou Georges Vigarello em sua "História do estupro"), o que é inaceitável. Contudo, faria justiça não prender pobres predadores sexuais sob o pretexto de que predadores ricos nunca vão? Ou antes, deveríamos garantir que estes fossem encarcerados com mais frequencia por suas agressões? Observamos em Gwenola Ricordeau a mesma indignação seletiva dos esquerdistas dos anos 70 diante das injustiças sofridas por criminosos de categorias desfavorecidas, implicitamente consideradas mais injustas do que a violência que infligem às suas vítimas femininas, e a mesma indiferença para com as consequências que a abolição do sistema prisional teria para as mais fracas e vulneráveis entre elas.
O tipo de reabilitação que deveria substituir o encarceramento proposta pelos anticárceres é a “justiça restaurativa”. As feministas emitiram as mais expressas reservas sobre esta alternativa à justiça criminal que surgiu em grupos cujo acesso a esta justiça criminal racista e classista era limitado, ou que se sentiram discriminados ou não foram ouvidos em suas interações com ela, como as populações indígenas no Canadá, que estão (como os afro-americanos nos Estados Unidos) desproporcionalmente representados na população carcerária em relação ao seu tamanho demográfico. Grupos de mulheres também se formaram com base nessa abordagem restaurativa em alguns campi canadenses onde as autoridades universitárias instituíram processos inadequados e ineficazes de resolução de casos de estupro: diante dessa falha das autoridades, as mulheres assumiram esses casos. Em todas essas situações, foi porque os órgãos oficiais encarregados de punir várias infrações eram deficientes em relação a certas categorias de vítimas que o recurso à justiça restaurativa foi considerado como substituto.
O QUE É A JUSTIÇA RESTAURATIVA?
O conceito a partir do qual opera a justiça restaurativa é que, quando uma ofensa é cometida, não é apenas a vítima que sofre o dano, é toda a comunidade onde a ofensa ocorre que é afetada e todos os que dela fazem parte. Um exemplo desse axioma dado pelos defensores da justiça restaurativa é o estupro: quando o estupro ocorre em uma comunidade, a segurança de todas as mulheres da comunidade está ameaçada.
Nessa abordagem, o delito não diz respeito apenas ao estado, à polícia e ao sistema de justiça, mas a todo o grupo a que pertencem as pessoas envolvidas, às relações interpessoais dentro desse grupo e às da vítima e do agressor. Na justiça restaurativa, o objetivo é consertar essas relações comprometidas: a comunidade é fragmentada e desestruturada por essas ofensas, sua unidade deve ser restaurada e a relação entre o agressor e a vítima também deve ser corrigida. Portanto, a responsabilidade pelo crime não é apenas do autor do crime, é também coletiva; por exemplo, em um caso de estupro, podemos integrar a noção de cultura do estupro na consideração da agressão. Nessa abordagem, o agressor é, de certa forma, vítima desse sistema, assim como a agredida.
Vemos o que perturba as feministas na justiça restaurativa: a proteção da vítima, seu bem-estar e suas necessidades, a importância de sua reconstrução, o reconhecimento dos graves danos materiais e psicológicos que lhes foram causados. A profundidade e a persistência de seu trauma não são mais o foco; o que se propõe é a reparação dos danos causados à comunidade, o restabelecimento da sua coesão e a reabilitação do agressor, para que volte a fazer parte dela. Essa abordagem tem sido comparada à das famílias diante do incesto: deve ser suprimida ou minimizada, para não separar a família: a preservação do clã é uma prioridade, e para isso a agressão é minimizada, reduzida ao conflito interpessoal, as responsabilidades são compartilhadas, a distinção ética fundamental entre vítima e agressor torna-se confusa e as dificuldades e sofrimentos desta última também deveriam ser ouvidos. E o objetivo final da justiça restaurativa é que, uma vez que ele tenha admitido sua culpa e compensado a vítima, a resolução do conflito assim obtido deve levar ao perdão e à reconciliação, condição para a unidade de um grupo. O bem coletivo tem precedência sobre todo o resto, preservar a comunidade e trazer de volta ao seu centro o membro perdido são os objetivos, a paz deve ser restaurada entre homens e mulheres, o sofrimento da vítima é secundário, ela deve se sacrificar pelo clã - isto é, pelos membros masculinos de seu clã.
O envolvimento da comunidade sendo central no conceito de justiça restaurativa, sendo uma das principais partes interessadas nos procedimentos de resolução de conflitos em obra; esses procedimentos são:
- conferências de família, durante as quais a situação é discutida, ações são consideradas e, possivelmente, um mediador é nomeado para garantir e controlar a comunicação entre o agressor e sua vítima. Para as feministas, pode lembrar as reuniões de família em que, quando uma mulher denuncia a violência doméstica que sofre, toda a família se une e a pressiona para convencê-la a ficar ou voltar com o marido.
- grupos de apoio à vítima, para tirá-la de seu isolamento. Esses grupos podem ser do mesmo sexo, e o objetivo de despersonalização da agressão será perseguido por meio do compartilhamento de relatos de agressões sexuais sofridas pelos integrantes do grupo, a fim de inseri-los no contexto geral da cultura do estupro.
- os grupos de responsabilização do agressor que o acompanharão para que tome consciência de sua culpa, pondere uma reparação e ouça a reprovação e a indignação da comunidade. Se persistir em não reconhecer sua responsabilidade, serão utilizados meios de retaliação, como ameaçá-lo de revelar publicamente sua identidade.
- encontros entre a vítima e o agressor, para que este se explique, se desculpa e peça perdão, na presença de mediação.
Também aqui as feministas não concordam que esses métodos devam ser usados em casos de crimes sexuais. A principal objeção diz respeito ao encontro vítima-agressor (este é o método implementado por uma associação de luta contra a pedofilia que põe em contato pedófilos e vítimas de pedofilia), cujos riscos para a vítima são óbvios: reativação do trauma, sensação de insegurança , perda de sigilo, medo de represálias. Olivia Mons, em representação da Associação de Vítimas da França, ressalta que a vítima pode ser exposta a "palavras muito duras" durante esses encontros, o que a desestabilizará e poderá comprometer sua reconstrução (14). Na presença intimidante ou mesmo ameaçadora de seu agressor, sua fala não será livre, paralisada pelo medo, ela não ousará ou será incapaz de expressar seus pensamentos. As vítimas podem ser submetidas a pressões por parte das famílias, dos agentes sociais ou de sua comunidade para aceitar esses encontros, conceder perdão ao agressor e retomar a relação com ele. Muitas vítimas de estupro ou pedofilia se recusam, terminantemente, a se encontrar na presença de seu estuprador, ao passo que, pelo contrário, e tanto quanto possível, querem virar a página e evitar pensar nele. Podemos ver essas injunções da comunidade para atender o agressor e refazer o diálogo com ele como uma forma de sadismo inconsciente para com as vítimas.
O agressor pode manipular a mediação, os grupos de apoio e a vítima, fingir remorso que não sente, usar essa encenação de arrependimento para se dar uma boa imagem social: conhecemos os talentos dos manipuladores de personalidades narcisistas. Membros de grupos de apoio e mediadores são voluntários sem formação em psicologia, cujas intervenções bem intencionadas, mas às vezes desajeitadas, longe de serem corretivas, podem agravar o trauma das mulheres agredidas. Enquanto os funcionários do tribunal estão imersos em preconceitos de gênero, também estão aqueles que atuam como mediadores. E esses voluntários são em sua maioria mulheres, são elas que, como sempre, investem seu tempo e energia sem compensação na cura da comunidade destruída e na reabilitação de criminosos masculinos, cuja associação pode ser emocionalmente difícil e até perigosa para elas. E assim encontram-se “lançadas” nos mais tradicionais papéis femininos: mães, enfermeiras, assistentes sociais, dedicadas ao serviço do homem, responsáveis por gerir e cuidar de seus comportamentos (auto) destrutivos e reparar os danos humanos e sociais que eles provocam.
Na “terapia de casal” como neste tipo de intervenção, a mediação envolve uma atitude de conciliação com a violência masculina para que o homem não se quebre e aceite se comunicar. Ao instalar uma falsa simetria entre os sofrimentos da vítima e do agressor, nega o diferencial de poder entre eles que está na origem da violência. Ao retirar a violência masculina do campo judiciário, e ao pretender resolvê-la com uma simples intervenção comunitária, banaliza essa violência, faz com que a gravidade desapareça, reduz um crime sob júdice ao nível de uma simples briga de bairro a ser resolvida amigavelmente.
Finalmente, a justiça restaurativa, quando substitui completamente a intervenção judicial, permite ao agressor escapar das sanções punitivas, o que é de grande benefício para ele: se lhe é oferecida a escolha entre submeter-se a um procedimento de justiça restaurativa e incorrer em sanções penais, sabemos antecipar qual será sua decisão. No entanto, pesquisas mostram que os benefícios da justiça restaurativa para as vítimas são menos claros. Achado previsível, dado que as prioridades da justiça restaurativa são antes de tudo a reconstrução da relação vítima-agressor e a "cura" do criminoso, condição para um retorno à normalidade da comunidade: que o crime seja de certa forma "digerido” e que a página seja virada, desafiando os direitos da vítima que, para as feministas, devem ser prioritários.
De maneira mais geral, podemos duvidar que a reapropriação pela comunidade de situações de violência contra as mulheres lhes ofereça maior proteção do que a justiça criminal. A justiça criminal é patriarcal - mas as comunidades também. Quanto mais forte o controle que uma comunidade exerce sobre os indivíduos, mais sua salvaguarda se torna um valor supremo, menos as mulheres são livres e mais são forçadas pela pressão da comunidade a respeitar os padrões patriarcais da comunidade em vigor.
Nesse debate, é importante lembrar que o encarceramento é predominantemente um fenômeno masculino (na França, 96,3% dos presos são homens) e que a instituição prisional acarreta custos muito elevados - os 3,8%. Bilhões de euros do orçamento anual da administração prisional são gastos quase exclusivamente no controle do crime masculino. Dado que quase todos os presidiários são do sexo masculino, fica ainda mais claro quem se beneficia com o abolicionismo prisional. Por outro lado, dado que o número de condenações por estupro caiu 40% em 10 anos (15) e que uma fração significativa dos presos por estupro (16) cometeu pelo menos outro crime sexual, não podemos dizer que a justiça implementa a prisão de estupradores em grande escala: sabemos que uma proporção ínfima deles é julgada e presa, que a maioria das investigações termina em "não seguimento" e que cerca de 9 em cada 10 agressores denunciados não são condenados. Como a justiça é frouxa e aprisiona poucos predadores sexuais, devemos concluir que aprisioná-los é inútil? A prisão não seria um impedimento, porque nós apenas mandamos um número mínimo de criminosos sexuais para a prisão, então vamos acabar com a prisão? É o mesmo tipo de raciocínio paralógico que avança aqueles pró-prostituição contra a lei que criminaliza a compra de sexo: pouquíssimos compradores de sexo são multados, essa lei é pouco e mal aplicada - até mesmo sabotada; Isso seria uma razão para acusá-la de ineficaz e exigir sua abolição? O que as feministas devem exigir, é uma melhor aplicação das leis que penalizam as violências masculinas e não a sua despenalização.
No entanto, é esta a solução proposta pelos partidários da abolição do sistema prisional, cuja resposta a esta imensa frouxidão judicial e social face à violência consiste em devolver uma concha. Esse objetivo é radicalmente antagônico à defesa dos direitos das mulheres e faz parte de uma ofensiva antifeminista mais ampla, decorrente de um “feminismo antiprisional” vinculado a movimentos queer, “intersetoriais” e “inclusivos” favoráveis à prostituição e à prostituição e ao movimento transgênero: um desses feminismos "não mexa no meu patriarcado" que o sofrimento dos machos violentos, desde que ‘proletários’, comova profundamente, e cujo programa de reivindicações consiste essencialmente em instrumentalizar o feminismo para colocá-lo ao serviço dos interesses patriarcais; como podemos ver neste artigo, “LGBTQI contra a prisão”, é a esse movimento que Gwenola Ricordeau se vincula ideologicamente (17). Entendemos por que essas posições antiprisionais fazem parte da plataforma de reivindicações dos movimentos acima citados: há uma óbvia coerência entre as posições do STRASS (que quer descriminalizar o proxenetismo e a compra de sexo) e as do pró-abolição das prisões (que querem descriminalizar o estupro e a agressão sexual): em ambos os casos, trata-se de descriminalizar a violência masculina. Por fim, lembremos que as radfems não são totalmente anticarcerárias: denunciam a prisão de mulheres condenadas porque se defenderam ou protegeram seus filhos contra um parceiro violento ou um predador sexual. Lamentavelmente, esta categoria de encarceradas não parece interessar muito as feministas anti-cárcere.
Referindo-se a Michel Foucault (“Vigiar e punir”), Gwenola Ricordeau afirma que, uma vez que a prisão estando a serviço do Estado, “não pode ser usada para lutar contra o capitalismo, o patriarcado ou o racismo sistêmico” (18). Se as feministas tivessem assumido esse ponto de vista do tudo ou nada - de que nada deveria ser esperado do Estado, da lei e do judiciário e tivessem desistido de lutar para fazê-los evoluir, não teríamos obtido o direito de trabalhar ou abrir uma conta bancária sem a permissão do marido, nem o direito de administrar nossa própria propriedade e dispor de nosso salário, nem o direito de se matricular ma universidade sem autorização marital, nem o direito de votar e ser eleita, nem estupro e nem o estupro marital seriam reconhecidos como crimes, não teríamos obtido o direito ao aborto e seu reembolso, etc. Claro, há uma distinção fundamental a ser feita entre direitos formais e direitos reais, mas sob o impacto das lutas feministas, os direitos formais podem gradualmente se tornar direitos reais. Enquanto se espera a abolição do patriarcado e do capitalismo, que esperamos ardentemente, mas que tarda a chegar, a abordagem reformista permite, pelo menos, melhorar concretamente a vida das mulheres, um objetivo (reconhecidamente trivial perante estas grandiosas causas revolucionárias) às quais Gwenola Ricordeau dá a impressão de ser indiferente.
Diante dessa nova ofensiva do feminismo “primeiro o homem” e sua abordagem para conciliar a violência masculina, e mesmo que possamos concordar que a instituição prisional, assim como o sistema de justiça, deva ser reformado e humanizado em muitos pontos, há um fato inescapável: estupradores presos não estupram, feminicidas presos não matam. Em março de 2020, havia 75.575 detidos na França, dos quais aproximadamente 1 em cada 4 (22%) é um agressor sexual. Deixar livre esses milhares de predadores sexuais dos mais terríveis - pedófilos reincidentes, estupradores em série, etc.; perpetradores de simples agressões sexuais raramente são presos - é uma ideia aberrante que reflete uma indiferença inconcebível para a segurança de mulheres e crianças.
Não posso esquecer o que dizem as mulheres vítimas de violência e recentemente vítima de tentativa de homicídio: que não podiam deixar de viver no terror (angústia, pânico, pesadelos, ter a impressão de estar sendo seguida, ouvir assaltos à noite, temer que seus filhos sejam sequestrados ou mortos, etc.) do que quando seus agressores estavam na prisão. Quando eles estavam livres, elas sabiam que estavam em perigo de morte. São essas mulheres que devem ser nossa prioridade, não a “cura” de seus agressores, nem o apaziguamento da comunidade. A resposta aos crimes sexuais masculinos não pode ser uma acomodação razoável com os criminosos e o “feminismo anticarcerário”, longe de estar “centrado na mulher”, é objetivamente uma ideologia de proteção de homens violentos.
As feministas lutaram durante décadas contra essa antiga regra patriarcal que estipula que os crimes contra as mulheres, cometidos na esfera privada, não têm a ver com justiça e lutaram para que os autores desses crimes fossem levados à justiça e, se possível, impedidos de reincidir. A justiça restaurativa, ao trazer esses crimes de volta à esfera privada e pretendendo liberar os estupradores de qualquer sanção penal, é portadora de um grande retrocesso em relação a essas conquistas do feminismo e agrava a relação desigual que existe entre homens e mulheres, da qual decorre a violência masculina em vez de reduzi-la. Continuaremos a lutar por uma melhor proteção das vítimas contra esta violência, para que seu direito humano fundamental à segurança seja finalmente efetivamente garantido e que não acabem em estatísticas anônimas na lista anual de feminicídios e na multidão de vítimas de estupro. Na medida em que esse objetivo requer (no caso de não haver outras opções efetivas) o encarceramento de seus agressores, a contradição entre o feminismo radical e o feminismo anticarcerário parece intransponível.
REFERÊNCIAS
1. https://worldpopulationreview.com/country-rankings/rape-statistics-by-country e https://www.statista.com/statistics/1177271/number-of-reported-cases-of-sexual-offence-in- Suécia por tipo /
2. http://www.justice.gouv.fr/statistiques-10054/infostats-justice-10057/les-condamnations-pour-violences-sexuelles-31757.html e https://www.lepoint.fr/societe/feminicides- 121-mulheres-mortas-em-2018-por-seu-cônjuge-ou-ex-companheiro-10-07-2019-2323920_23.php #: ~: text = Em% 202018% 2C% 20121% 20femmes% 20ont,% C3% A9poux% 2C% 20concubins% 2C% 20etc .)
3. http://www.sexual-offender-treatment.org/88.html
4. Idem.
5. Idem.
6. Idem.
7. Idem.
8. “Tratamento para ofensores sexuais para reduzir a reincidência entre criminosos sexuais condenados (2017)
9. https://fr.wikipedia.org/wiki/Viol_en_France
10. https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1780353/inegalite-budget-eric-girard-isabelle-charest e https://ici.radio-canada.ca/nouvelle/1788965/hommes-violents-aide- quebec-violent-conjugale-feminicide #: ~: text = La% 20vice% 2Dpremi% C3% A8re% 20ministre% 20et, publique% 20du% 20Qu% C3% A9bec% 2C% 20Genevi% C3% A8ve% 20Guilbault. & text = Les% 20organismes% 20vou% C3% A9s% 20% C3% A0% 20aider, cours% 20des% 20cinq% 20prochaines% 20ann% C3% A9es .
11. Correctionalisation https://www.village-justice.com/articles/correctionnalisation-viol-point-vue-avocat-victime-par-Carine-DURRIEU-DIEBOLT,24384.html
16. https://smart.ojp.gov/somapi/chapter-3-sex-offender-typologies
17. https://friction-magazine.fr/lgbtqi-contre-la-prison-emploi-avec-gwenola-ricordeau/